Entrevista

Bolsonaro não vai dar golpe no 7 de Setembro, mas atos são preparação para isso, diz estudioso

Presidente Jair Bolsonaro - EVARISTO SA / AFP

Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, não acredita que haverá um golpe neste 7 de setembro. Mas a mobilização bolsonarista no feriado é, segundo ele, preparação para uma ruptura.

"O que Bolsonaro planeja é uma invasão do Capitólio organizada", afirma Nobre em referência à multidão que ocupou o Congresso dos EUA em 6 de janeiro deste ano sob o estímulo de Donald Trump, presidente do país àquela altura.

O autor do livro "Ponto-final: a Guerra de Bolsonaro contra a Democracia" insiste que o campo democrático precisa entrar com urgência em um acordo, considerando que o objetivo de Bolsonaro é -e sempre foi- dar um golpe. Portanto, avaliações de cenário que sejam unicamente eleitorais são insuficientes neste momento.

De acordo com ele, o debate sobre o projeto autoritário de Bolsonaro precisa subir alguns degraus, tornando-se mais complexo. "As discussões têm sido muito rasas. Dizem: 'Ele vai dar um golpe porque está desesperado'. Não é isso! Ou falam: 'Lula já ganhou'. Não é assim."

"A desarticulação da sociedade é tão grande que a impotência vira virtude. Como se a situação pudesse ser resolvida sozinha, como se a inércia fosse a melhor posição ('não precisamos fazer nada, Bolsonaro já está derrotado'). Não temos um final feliz garantido", diz Nobre à Folha de S.Paulo.

PERGUNTA - Devemos temer os protestos bolsonaristas neste 7 de Setembro?
MARCOS NOBRE - Depende da expectativa. Se a expectativa é: vai ter um golpe em 7 de setembro? Não, não vai. Se a expectativa é: é uma preparação para o golpe? É. Na verdade, é um exercício de mobilização de tropas, dá um efeito muito importante, esperar um golpe que não vem. Aí se faz um novo exercício e, novamente, é um golpe que não vem. Quando vem, você está despreparado pra ele.

Todo mundo compara [o que o bolsonarismo pode fazer] com a invasão do Capitólio, mas o episódio nos EUA foi muito desorganizado. O que Bolsonaro planeja é uma invasão do Capitólio organizada. Mais de um ano antes da eleição, ele começa a organizar como se dissesse: "Quando for para fazer, que não seja aquela bagunça dos EUA, aqui tem que ser bem feito". Para tanto, ele precisa dessa mobilização no 7 de Setembro.

P. - O 7 de Setembro pode ser visto, então, como prévia de um possível golpe?
MN - Sim. É preciso deixar claro o seguinte: desde que se apresentou como candidato, o objetivo de Bolsonaro é dar o golpe. Há três caminhos para isso: a via eleitoral pura, um golpe antes da eleição, e um golpe combinado com a eleição.

É claro que o golpe pela vitória eleitoral seria mais simples para ele, mas, não tendo esse, há as outras duas opções, dependendo de como ele continuar. E ele continua muito bem posicionado para realizar qualquer um desses três caminhos. Mesmo depois de tudo o que ele fez e com o país na situação em que está, ele tem o apoio de um quarto do eleitorado.

A questão dele, portanto, é dar o golpe. O problema é o desequilíbrio entre esse projeto dele e o campo democrático brasileiro, que continua fazendo cálculos meramente eleitorais. O campo democrático joga amarelinha enquanto o Bolsonaro está montando um octógono de MMA, essa é a diferença. O campo democrático só pensa em termos eleitorais; para o Bolsonaro, não existe esse limite.

Essa clareza sobre o verdadeiro projeto do Bolsonaro tem se espalhado, mas ainda não é suficiente para unir o campo democrático. E a prova maior é que não houve impeachment. É um sinal desse desequilíbrio: de um lado, uma sociedade acostumada com regras democráticas e que, portanto, só pensa em termos eleitorais; do outro, alguém disposto a destruir a democracia.

Em vez de pensar em como defender a democracia para que exista eleição, esse campo fica fazendo cálculo eleitoral, avaliando como cada passo vai beneficiar o candidato A ou B.

Por isso, é importante parar de falar em arroubos e bravatas. Não é nem uma coisa nem outra, são etapas de um cronograma de um golpe. Vamos parar de usar palavras inadequadas.

P. - É preciso, então, levar Bolsonaro a sério quando ele diz ter três alternativas para o futuro: "estar preso, ser morto ou a vitória"?
MN - Sim. A única saída para ele é o golpe, mas isso é desde sempre. O grande objetivo dele não é ganhar eleição, é dar um golpe. A eleição é só um dos elementos táticos envolvidos nesse objetivo. Enquanto isso não ficar claro para todos, o combate ao Bolsonaro será cada vez mais complicado.

Hoje, o cenário mais provável para ele é uma combinação de eleição com golpe, o que significa chegar ao segundo turno - e Bolsonaro tem plenas condições de fazer isso, principalmente se não houver uma candidatura de direita não bolsonarista. Se ele sair derrotado por uma diferença de, vamos dizer, 60% a 40%, estão dadas as condições para o golpe. E não é nem um pouco irrealista imaginar um cenário assim.

O objetivo dos bolsonaristas é diminuir ao máximo a margem em relação à candidatura Lula (se for mesmo o Lula em um segundo turno) para poder criar um clima necessário para um golpe. Esse é o objetivo.

A questão é a seguinte: é preciso ter um apoio muito grande contra o golpe para que ele não aconteça, o que implica um pacto da esquerda e da direita não bolsonarista. Sem esse pacto, o Bolsonaro sai na frente porque o objetivo dele não é eleitoral, a eleição é só mais um dos elementos no cronograma do golpe. E o outro lado tá pensando só em termos eleitorais.

P. - Setores da esquerda admitem que os atos da oposição neste 7 de Setembro serão mais modestos numericamente em relação aos protestos da turma de Bolsonaro. Não é um erro de estratégia insistir nessas manifestações mesmo sabendo que haverá esse descompasso?
MN - Sem dúvida, mas o problema é mais profundo. O bolsonarismo tem um grau de organização muito mais elevado do que o campo democrático. Fala-se muito que Bolsonaro está fraco ou acuado, mas veja: qual o objetivo dele? Dar um golpe. E o que precisa para isso? Uma base de apoio numericamente significativa e fiel, uma máquina de propaganda e desinformação muito bem organizada, capaz de mobilizar em direção ao golpe. Ele tem tudo isso. E o campo democrático não tem hoje uma organização semelhante para contrarrestar esse movimento.

P. - Por quê?
MN - Primeiro pela razão eleitoral, que já vimos. Um lado diz que não vai se aproximar da esquerda para não beneficiar o Lula e rejeita o acordo. Para o grupo em torno da candidatura Lula, o ideal é enfrentar o Bolsonaro do ponto de vista eleitoral. Também não há interesse em se reunir com a direita não bolsonarista.

O que impede a aliança, então, é a eleição. Não percebem que a eleição é a miragem, é a cenoura que o Bolsonaro colocou ali na frente para todo mundo. Como se ele fosse parar na eleição, mas não vai.

O fato de não conseguir sequer fazer uma discussão dentro do campo democrático sobre o ato unificado é gravíssimo. Antes de organização, não há articulação, as pessoas não sentam para conversar sobre a gravidade do momento. O bolsonarismo está organizando estes protestos há mais de dois meses. O campo democrático precisa se reunir e reconhecer isso.

Sobre os atos de oposição do 7 de Setembro, eu só gostaria de separar o Grito dos Excluídos, que acontece todo Dia da Independência desde 1995. É uma manifestação tradicional, que deveríamos considerar à parte.

P. - O senhor falou que um dos caminhos do golpe seria via eleitoral pura. Como seria?
MN - É o caminho dos populismos autoritários da década de 2010. Instaura-se o autoritarismo pela via eleitoral. Depois de ganhar a eleição, vai destruindo as instituições por dentro.

Muitas pessoas me dizem: 'Não é possível que o Bolsonaro tenha um projeto". Eu respondo que todo autoritário tem um projeto, e a primeira etapa é destruir, ação na qual ele mobiliza um sentimento antissistema, que é muito forte. Só em um segundo momento é que vai realmente aparelhar todas as instituições e começar a restringir as liberdades.

A primeira etapa deu certo nos EUA, o que não deu certo foi a segunda, o golpe que Trump estava tentando.
Bolsonaro tem uma vantagem: Viktor Orbán foi eleito em 2010, Donald Trump em 2016. Ele teve tempo de acompanhar a invasão do Capitólio de maneira desorganizada, assim como teve tempo de ver a situação da Bolívia, na qual o golpe começou nas polícias, e não nas Forças Armadas.

P. - Com base em todas essas informações, diria que o golpe é o cenário mais provável?
MN - É preciso separar as duas coisas. A probabilidade de acontecer um golpe é uma, a probabilidade de ser bem-sucedido é outra.

Sobre o primeiro ponto: depende de como o campo democrático vai reagir a essas ameaças. Temos hoje a impressão de que essa consciência de que Bolsonaro tem um projeto autoritário e não vai ser domado está se espalhando. Mas não significa que ele tenha perdido a base de apoio, que é, em geral, antissistema e, em boa parte, autoritária. Esse apoio que ele tem é impressionante.

P. - Qual será a atitude dessa consciência de que o projeto de Bolsonaro é pra valer?
MN - Se o campo democrático continuar fazendo cálculo meramente eleitoral, aumenta a chance do golpe ser bem-sucedido. Se não ficar claro para esse campo, especialmente para a esquerda, que a direita não bolsonarista precisa ter uma candidatura competitiva, aumenta a probabilidade do golpe ser bem-sucedido. Se a direita não-bolsonarista não for capaz de construir uma candidatura competitiva, aumenta a probabilidade de sucesso de golpe. São todas essas coisas juntas.

É claro que Bolsonaro não vai, necessariamente, chamar ele mesmo o golpe. Pode não ser o iniciador, mas, evidentemente, se o golpe vem, ele é o único beneficiário possível.

P. - A mobilização dos policiais é hoje mais preocupante para uma eventual ruptura do que uma insurgência das Forças Armadas?
MN - Sobre as Forças Armadas, a gente não sabe. Sobre as polícias, a gente sabe muita coisa e o que se sabe é preocupante. As polícias são estudadas por vários centros de pesquisa competentes e, por isso, temos elementos para dizer que o bolsonarismo nessas corporações é muito significativo e radicalizado.

No caso das Forças Armadas, temos muito impressionismo, as pessoas acham isso ou aquilo. O que podemos dizer de objetivo em relação a elas é que não vão apoiar um golpe se houver uma grande organização em defesa da democracia.

Se o Bolsonaro conseguir criar um clima de divisão do país, que é o que ele vai tentar fazer até o ano que vem, radicalizando a população, aí, de fato, é muito difícil imaginar o que as Forças Armadas poderão fazer.

Bolsonaro sabe que precisa de organização. E o 7 de Setembro é a demonstração da organização, da mobilização e da capacidade de ação.

P. - Um grande teste?
MN - Sim, é quase uma manobra militar.

P. - Quando fala em uma grande maioria da população para deter o golpe, quer dizer o quê? Segundo o último Datafolha, 51% consideram o governo ruim ou péssimo, e 24%, regular. É suficiente?
MN - Acho razoável supor que sim. Mas é impressionante que exista um quarto que o apoia. Me choca quando dizem que Bolsonaro tá fraco, acabado, nas cordas Fraco em que termos? Eleitorais? Mas eleição para ele é só uma tática. Como está fraco se o objetivo dele não é a eleição, e sim o golpe?

Para o que ele quer -o caminho preferencial é uma combinação de segundo turno com golpe-, ele mantém perfeitamente a posição dele, contra todas as probabilidades. A situação do país é deplorável, estamos numa situação falimentar, de sofrimento social brutal, e um quarto apoia esse governo e tem disposição em votar nele.

Me preocupa que muitos achem que ele já está derrotado. E derrotado eleitoralmente, que ele só tem o golpe para dar. Não! A grande cartada dele é a combinação de golpe e eleição. Ele está bem posicionado para o projeto dele. Quem está mal posicionado é o campo democrático, que acha que já ganhou.

P. - Manifestações de cunho mais agressivo neste dia 7, estimuladas pelo presidente, poderiam afugentar o centrão, reduzindo apoio ao governo no Congresso?
MN - O que afugenta o centrão são duas coisas: falta de recursos estatais e de votos. Não faltam recursos para eles. No caso dos votos, há um problema regional, que é o Nordeste. Bolsonaro vai ter que ignorar o fato de que vários que estão no governo, que o apoiam agora, não vão apoia-lo na eleição no Nordeste porque seria suicídio eleitoral.

É uma ilusão achar que o centrão tem pudores contra radicalismos, isso não faz o menor sentido. Eles não têm nenhum problema com isso. O que importa é ter acesso aos fundos públicos mais do que os outros.

P. - Vê alguma possibilidade de impeachment?
MN - Não vejo nenhuma viabilidade para o impeachment. Para que fosse viável, o campo democrático deveria ter feito um investimento enorme pra reduzir essa base de apoio fiel para menos de 20%, no mínimo, algo que não aconteceu. Bolsonaro tem a presidência da Câmara, apoio de um quarto do eleitorado, uma máquina de desinformação e propaganda, uma base nas Forças Armadas e nas forças policiais. Tudo isso é muito bom como dispositivo, considerando o projeto que ele tem.

P. - Lembra-se de algum 7 de Setembro tão carregado como esse? Tão tenso?
MN - Os 150 anos da Independência, em 1972, foi muito carregado no sentido mais brutal que pode existir. Era o auge da ditadura militar, o auge dos assassinatos. Mas com essa ideia de um golpe no horizonte, não. Não existem precedentes nesse sentido de usar a data como prenúncio para um golpe, como exercício para um golpe.