Pandemia reduziu diagnósticos e evidenciou desigualdade nos tratamentos do câncer
Pesquisa da Fiocruz identificou inovações consideradas promissoras na área
O diagnóstico e o tratamento do câncer nunca estiveram tão perto de avanços significativos e tão distantes de chegar à imensa maioria dos brasileiros que precisam deles, avaliam especialistas. A pandemia de Covid-19 aprofundou dificuldades e aumentou desigualdades entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o setor privado. Somente 8,5% dos médicos que trabalham exclusivamente no SUS classificam o acesso a diagnóstico e tratamento como bom.
O dado faz parte da pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) “O futuro das tecnologias de diagnóstico e tratamento do câncer (2019-2049)”, coordenada por José Gomes Temporão e Luíz Antônio Santini. O estudo procurou identificar inovações consideradas promissoras pelos médicos brasileiros. Foram entrevistados 821 médicos de dez sociedades oncológicas do Brasil.
Especialistas como Santini, ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA) e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), veem em novas tecnologias, como biópsia líquida e terapia celular, oportunidades contra o câncer, a segunda principal causa de morte no mundo e a primeira em 600 municípios brasileiros.
Porém, para que promessas se tornem realidade é preciso uma política nacional contra a doença, coisa que o Brasil não tem nem em plano nem em intenção, diz o também pesquisador do CEE e ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão.
— Com certeza absoluta teremos aumento da mortalidade por câncer no Brasil. O Brasil não tem uma política científica contra a dependência, que poderia orientar e reduzir gastos. Temos condições de nos tornamos independentes e fornecedores, como fizeram China e Índia. Não nos falta capacidade, mas, sim, visão estratégica — afirma Temporão.
Santini acrescenta que nos primeiros três meses da pandemia, em 2020, houve uma redução de 90% no acesso ao diagnóstico de câncer de mama e de colo de útero, os dois mais frequentes nas mulheres brasileiras, diz Santini. Segundo ele, nesse período, os procedimentos de rotina do SUS tiveram uma queda de 80%.
No evento online “Atenção à saúde, inovação tecnológica e câncer: impactos e desafios da era Covid-19”, realizado pela Fiocruz, ficou claro que o desafio de melhorar o diagnóstico é uma emergência de saúde pública, em meio à pandemia.
Um levantamento realizado pelo Movimento Todos Juntos Contra o Câncer mostrou que na pandemia 61% dos pacientes (público e privado) tiveram seus tratamentos alterados. Além disso, 71% dos pacientes do SUS tiveram dificuldades para fazer exames, e outros 66% enfrentaram problemas para conseguir consultas. Os dados foram apresentados pela pesquisadora Nina Melo, da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia.
Temporão salienta ainda a relevância de ampliar e organizar a rede de assistência no SUS, com foco na atenção primária, investir no diagnóstico. Fora do SUS, o problema é a baixa cobertura dos planos de saúde privados.
O abismo entre os pacientes do SUS e da rede privada, que já era imenso, aumentou absurdamente, destaca Carlos Gil Ferreira, presidente do Instituto Oncoclínicas. Mas mesmo no setor privado, o impacto da pandemia de Covid-19 é grande, acrescenta. Muitos pacientes fizeram diagnóstico tardio e alguns interromperam o tratamento.
— O Brasil mergulhou num abismo tecnológico em relação a avanços realizados em EUA e Europa. Tudo o que se tentava desenvolver de tecnologias parou até antes da pandemia, com ela a situação ficou desesperadora — enfatiza Ferreira.
Para agravar a situação, acrescenta Daniel Tabak, onco-hematologista membro da Academia Nacional de Medicina (ANM), as pessoas com câncer costumam ter evolução pior da Covid-19 e também não respondem da mesma forma à vacinação.
— Vamos sentir o impacto da pandemia no combate do câncer por anos. E não apenas dela, mas também da falta de estratégias nacionais contra a doença — enfatiza Tabak.
A dependência do país a insumos importados que ficou mais do que evidente na pandemia da Covid-19, primeiro com os testes de diagnóstico e depois com as vacinas, também se repete no câncer. O Brasil importa 100% dos insumos necessários para o diagnóstico molecular do câncer. Já a imunoterapia, que para especialistas como Ferreira chegou para mudar a oncologia, não faz parte do planejamento do país.
A imunoterapia é capaz, por exemplo, de proporcionar a um paciente com câncer de pulmão metastático viver de duas a três vezes mais do que o tempo atual de sobrevida, que não costuma passar de um ano e meio. A imunoterapia oferece a vantagem ainda de ser menos tóxica. Mas a chance de sobreviver é para quem pode pagar. É um tratamento crônico, que custa R$ 50 mil por mês.
As terapias celulares, com células CAR T, estão na vanguarda do tratamento contra o câncer. Prometem tratar casos hoje sem opção e aumentar significativamente a sobrevida da doença de forma geral. Porém, o tratamento chega a custar US$ 1 milhão por paciente nos EUA.
— O câncer deixou de ter uma política estado, a Covid-19 só piorou que o já estava ruim. Não há estratégia para nacionalizar moléculas necessárias à imunoterapia. Nos próximos cinco anos o cenário é desolador, mesmo para o setor privado. Tratamentos muito melhores estão disponíveis no exterior, mas o brasileiro não terá acesso — lamenta Ferreira.
A dependência de importações afeta o Brasil de duas formas. Primeiro, a falta de estratégia de investimento em tecnologias obriga o país a pagar preços que já são proibitivos no exterior. Somada a isso, a desvalorização do real frente ao dólar torna as novas tecnologias ainda mais caras.
Ferreira destaca que o Brasil tem cientistas, dispõe de uma incipiente indústria de biotecnologia, mas não tem estratégia nacional e financiamento para a ciência. Segundo ele, o setor privado tem investido, mas os recursos não são suficientes para atender às necessidades do país.
Tabak está convicto de que a maior parte da população não terá acesso a tratamentos novos e a judicialização aumentará. E há risco ainda de os planos de saúde passarem a cobrar franquias.
— Ficará inviável para quase todos os pacientes. Pense que os remédios novos para leucemia custam R$ 100 mil por mês. Para que uma pessoa ganhe mais dois ou três anos de vida, toda a família ficará endividada. Isso é o que chamamos de toxicidade financeira do câncer e a razão pela qual muitos pacientes de câncer vão à falência ou morrem sem tratamento nos EUA, aonde não existe um SUS — frisa Tabak.
Ele diz que sem uma política nacional para o câncer, a conta não fechará jamais.