Ala ideológica se impõe, e fala de Bolsonaro na ONU ofusca pragmatismo e celebra negacionismo
De acordo com auxiliares e parlamentares, o presidente optou por um forte componente ideológico em sua fala para energizar seus apoiadores mais fiéis e tentar mostrar que ele "segue sendo o Bolsonaro"
Apesar de o Itamaraty e outros assessores da ala pragmática terem conseguido emplacar temas caros à diplomacia brasileira no discurso de Jair Bolsonaro (sem partido) na ONU, os acenos do mandatário à base mais radical do bolsonarismo deram o tom do texto lido na Assembleia-Geral na manhã desta terça-feira (21).
De acordo com auxiliares e parlamentares, o presidente optou por um forte componente ideológico em sua fala para energizar seus apoiadores mais fiéis e tentar mostrar que ele "segue sendo o Bolsonaro" após os recuos feitos depois das manifestações do 7 de Setembro.
Ainda preocupa o Palácio do Planalto o impacto da "Declaração à Nação" divulgada por Bolsonaro, dois dias após os protestos de raiz golpista, em defesa do governo. Na carta, redigida com a ajuda do ex-presidente Michel Temer (MDB), Bolsonaro disse que não teve "nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes" –apesar de sucessivos ataques e ameaças a integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal).
Com a pauta do 7 de Setembro perdendo força, Bolsonaro precisa encontrar outras formas de agradar a base radical do bolsonarismo. Dessa forma, assessores dizem que o palco da ONU foi o escolhido para enviar a mensagem.
Bolsonaro abriu seu pronunciamento avisando que mostraria um Brasil "diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões". Também alegou que o país se encontrava "à beira do socialismo". Fez ainda um aceno ao movimento evangélico, ao destacar que o Brasil concederia vistos humanitários a "cristãos" no Afeganistão.
Mas foi a pandemia da Covid-19 que centralizou as contribuições da ala ideológica ao pronunciamento. Nesse tema, Bolsonaro contrariou consensos internacionais e repetiu os argumentos e teorias negacionistas que emprega em suas falas para o público interno.
Queixou-se das "medidas de isolamento e lockdown", apesar de muitos países desenvolvidos terem apostado em políticas de distanciamento para conter a disseminação do vírus.
Também afirmou ser contrário a "qualquer obrigação relacionada à vacina" da Covid e defendeu o chamado tratamento precoce contra a doença –baseado em medicamentos ineficazes e descartado pelas principais autoridades sanitárias ao redor do mundo.
"Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todo", declarou.
O principal expoente do grupo ideológico que compôs a comitiva oficial foi o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República.
Após o discurso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que não há "nada de novo" na fala de Bolsonaro. "Assistimos rapidamente ao discurso do presidente na ONU e, nos aspectos gerais, nada que surpreenda a política brasileira. Ele falou o que já vem falando há muito tempo internamente no país."
Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse que Bolsonaro destacou pontos importantes do Brasil. Ele também disse que não foi surpreendido. "Obviamente que há posições do presidente com as quais eu discordo, mas são convicções dele, já conhecidas. Portanto, não há grandes surpresas em relação à fala do presidente sobre aquilo que ele normalmente prega."
Parlamentares do Centrão avaliam que o discurso foi menos moderado do que o esperado, mas evita novo desgaste do Planalto com o Congresso. Para um deputado próximo de Bolsonaro e de Lira, as falas não mudam a impressão de outros países sobre o Brasil.
Líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) elogiou o discurso. Nas redes sociais, citou "ênfase" na preservação ambiental, vacinação, auxílio emergencial e crescimento da economia. "Busca de investimentos como apelo final", escreveu Barros no Twitter. Questionado se as declarações não foram direcionadas apenas a apoiadores, Barros disse à reportagem que "o recado foi dado a todos". "É sempre bom esperar que Bolsonaro seja Bolsonaro."
Aliados fiéis do presidente celebraram o pronunciamento nas redes sociais. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) destacou um trecho da fala e escreveu no Twitter: simplesmente, fantástico!"
André Porciuncula, Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, ressaltou em sua conta que Bolsonaro falou sobre "liberdade, família e patriotismo". "Numa era insana, qualquer líder mundial que fale sobre liberdade, família, patriotismo e Deus será imediatamente rotulado como radical. Obrigado, presidente Bolsonaro, por ser radicalmente são."
Já Eduardo Bolsonaro escreveu que seu pai falou a verdade para todo o mundo, "sem filtro da mídia (que se desesperou após a transmissão)". "Em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, o presidente mostrou como a luta pela liberdade é o foco de seu governo."
Embora o discurso tenha saído com um forte componente ideológico, o ministro Carlos França (Relações Exteriores) e demais assessores pragmáticos conseguiram colocar no texto temas caros à diplomacia brasileira. Em outros casos, convenceram Bolsonaro a retirar pontos considerados problemáticos.
O próprio presidente havia anunciado que defenderia, na ONU, o marco temporal de 1988 para a demarcação de terras indígenas. O assunto está em julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) e sofre forte oposição de ambientalistas e de defensores de direitos indígenas. O presidente acabou não tocando no julgamento, evitando um novo desgaste para o governo.
Sobre ambiente, ele defendeu o Código Florestal e destacou o reforço orçamentário em agências governamentais para alcançar o fim do desmatamento ilegal. Afirmou ainda que o Brasil buscaria "consenso", durante a reunião global do clima na ONU (COP-26), nas negociações sobre o mercado internacional de carbono.
Diplomatas também comemoraram o fato de Bolsonaro não ter limado a defesa da reforma do Conselho de Segurança da ONU e ter destacado o pleito de um assento permanente para o Brasil no órgão. Outro ponto que gerou alívio no Itamaraty foi Bolsonaro ter preservado a importância dada pelo país nas missões de paz da ONU.
"O Brasil sempre participou em missões de paz da ONU. De Suez até o Congo, passando pelo Haiti e Líbano."