Superbônus para uns e desemprego para outros; entenda a desigualdade na retomada do emprego
A pandemia reforçou uma busca por profissionais capazes de desenhar e colocar em operação diversos tipos de plataformas digitais
Aos 30 anos, a gerente de engenharia Laisa Masini chefia um grupo de quatro pessoas na Loft, uma das mais bem avaliadas startups brasileiras, com um salário superior a R$ 20 mil. Com experiência em desenvolvimento de software, tem uma rara condição no mercado de trabalho: pode escolher onde trabalhar.
Contratada na pandemia, Laisa participou de outros processos seletivos e não demorou a sair de um emprego por não concordar com a cultura corporativa. Passou por unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) como 99 e Loggi, morou em Berlim em 2016, quando a cidade começou a fervilhar de empresas de tecnologia, e recebe ofertas com frequência.
"Meu ensino médio técnico na área de programação foi mais importante que a faculdade, foi o que me inseriu na tecnologia", afirma a gerente, que cursou análise de sistemas na graduação.
Com quase a mesma idade, Larissa Machado, 25, vive uma realidade um tanto diferente. Todos os dias, acessa os principais agregadores de vagas para conseguir um emprego. Busca aquelas com as quais considera ter mais chances de contratação, como recepção, atendimento ao público e telemarketing.
Demitida na crise iniciada no ano passado, conseguiu receber cinco meses de seguro-desemprego graças ao quase um ano de carteira assinada. Desde então, ouviu muitos nãos.
"As empresas estão muito exigentes e não há feedback, você não sabe o que está faltando, porque não foi escolhida. Infelizmente, tudo é muito difícil quando você não tem ensino superior", diz.
Laisa e Larissa são duas faces de um mercado de trabalho ainda em recuperação e cuja retomada no setor de serviços é puxada por atividades não presenciais e ligadas à tecnologia. Para quem, como Larissa, tem pouca qualificação, o futuro não é promissor, uma vez que ele será cada vez mais digital.
No topo da pirâmide social, profissionais com especialização são disputados por empregadores no mercado financeiro, tecnológico e imobiliário e discutem pacotes de benefícios e participação acionária. Nas empresas e recrutadores, termos como flexibilidade para retenção de talentos tornaram-se comuns.
A pandemia reforçou uma busca por profissionais capazes de desenhar e colocar em operação diversos tipos de plataformas digitais, seja para atender a demanda por compras online ou para garantir o funcionamento de atividades que, até então, não estavam adaptadas ao modelo remoto. Mesmo quem já trabalhava com digital precisou reforçar operações e serviços, melhorar processos e certificados.
Empresas do varejo eletrônico são um exemplo claro dessa demanda: Americanas S.A., Magazine Luiza e Mercado Livre devem contratar, além da leva já adquirida durante a pandemia, no mínimo 250 pessoas até dezembro. São vagas de desenvolvedores, engenheiros de software, de dados, designers, cientistas de dados e especialistas em cibersegurança.
"O mercado para profissionais de tecnologia é extremamente aquecido. Veio a pandemia e isso foi intensificado de tal forma que, sem medo de errar, digo que o maior gargalo de crescimento da indústria de tecnologia no Brasil é a falta de mão de obra", afirma Rodolfo Fücher, presidente da Abes (Associação Brasileira das Empresas de Software).
Se antes da crise de Covid já existiam mais vagas do que profissionais no setor, hoje esse hiato aumentou. As empresas brasileiras passaram a competir com salários pagos em dólar ou euro, já que companhias internacionais miraram outros países com a viabilidade do home office.
Além de boa remuneração, empresas de todo porte tentam formar profissionais para preencher lacunas. Enquanto a Loft, empregadora de Laisa, paga um auxílio educação (verba anual para cursos), a construtora MRV dá bolsas de estudos para desenvolvimento front-end (a interface de um aplicativo com o usuário).
"O problema das corporações tem sido a mão de obra", diz Reinaldo Sima, diretor de tecnologia da MRV. "Há uma guerra pela busca de recursos. Aconteceu uma corrida parecida no 'bug do milênio', as pessoas queriam implanatar SAP e faltava esse recurso no mercado."
Treinamento, auxílio para educação e flexibilidade viraram o básico para reter profissionais da área. Especialistas apontam, no entanto, que a maior garantia tem sido o incentivo acionário.
Muito usado em empresas de capital fechado que devem entrar na bolsa de valores, o modelo permite que funcionários adquiram ações no futuro por um preço pré-fixado no presente, uma maneira de incentivar o desempenho individual.
"O pacote de compensação é uma forma de mostrar como o trabalho do profissional impacta na valorização da empresa. Com a compra de ações, a gente mira no longo prazo, não queremos que a pessoa fique seis meses, mas três, cinco, dez anos com a gente", afirma Silvia Kihara, líder de recrutamento de tecnologia no Nubank.
Para a economista Diana Gonzaga, da UFBA (Universidade Federal da Bahia), duas demandas se encontraram na pandemia. Uma foi gerada pela crise sanitária, que alterou os padrões de consumo e de trabalho. Além do ecommerce e do home office, as aulas online exigiram das escolas programações especiais e a contratação de serviços para atender o novo modelo.
A outra vem de uma mudança mais profunda da estrutura produtiva. "A economia mundial tem passado por transformações que exigem cada vez mais conhecimento de tecnologias digitais. Embora o Brasil esteja um pouco atrasado nisso, a gente já vinha sentindo essa necessidade", diz Diana.
Na outra ponta, na base da pirâmide, desejos mais básicos, como um emprego formal, parecem ficar cada vez mais difíceis –neste ano, o Brasil bateu o recorde de trabalhadores em desemprego de longa duração, aquele que ultrapassa dois anos. São 3,5 milhões de pessoas nessa condição.
"Olha, ter carteira assinada vai ficando cada vez mais distante. Além disso, quando aparece mesmo alguma coisa, o salário é fora da realidade", diz Larissa, que busca vaga em atendimento.
No segundo trimestre deste ano, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, somente dois setores têm mais empregados do que no pré-pandemia: o agronegócio e os serviços de informação e tecnologia.
Os dados da pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) consideram tanto os empregos formais quanto os informais.
A maior queda, em relação ao segundo trimestre de 2019, está nos setores de alojamento e alimentação, com 20,34% menos empregados, e de serviços domésticos, com recuo de 17,93%. No comércio, grupo que inclui também reparo de veículos, a queda é de 9,01%. A comparação considerou os dados de 2019 para eliminar as distorções do período mais agudo da crise gerada pela pandemia.
No emprego formal, 2,2 milhões de vagas formais foram criadas de janeiro a agosto, segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do Ministério do Trabalho e Previdência. O setor de serviços é aquele com o maior número de postos de trabalho abertos, 927,2 mil em oito meses.
O recuo no desemprego tem sido acompanhado por vagas com salários menores. O rendimento médio real no segundo trimestre ficou em R$ 2.515. Era de R$ 2.520 no mesmo período em 2019 e havia chegado a R$ 2.730 no terceiro trimestre do ano passado, quando a ocupação estava sustentada em empregos formais e de salários médios maiores.
Quando o país enfrenta uma crise, os primeiros empregos a serem cortados são aqueles de baixa qualificação, concentrados principalmente no comércio e nos serviços. "São setores muito atrelados à dinâmica da economia. Na medida em que vai havendo a recuperação, geram-se vagas", diz Diana Gonzaga.
Ela aponta que a contratação formal envolve custos, então a empresa precisa de mais certeza de recuperação. "Hoje ainda temos outras questões, como a crise energética e a inflação, que podem ter um efeito negativo sobre o consumo e, por sua vez, conter as expectativas de melhora."
Além da preocupação em garantir emprego de qualidade na base da pirâmide, um problema que deve persistir no longo prazo é a dificuldade de reverter a desigualdade, aprofundada na crise.
"A questão é que 20% dos estudantes ficaram sem acesso às aulas na pandemia, e esse prejuízo, não se recupera mais", diz Fücher, presidente da Abes. Para ele, os 20% já perderam a chance de competir igualmente no mercado de trabalho.