Pandemia

'Eles me davam kit Covid, mas não me davam oxigênio', diz paciente da Prevent Senior

Prevent Senior - Divulgação / Site da Prevent Senior

O químico aposentado Carlos Alberto Reis, 61, sobreviveu a um quadro gravíssimo de Covid-19 e a 35 dias de UTI, apesar da assistência médica e hospitalar recebida na rede credenciada de seu plano de saúde.

Há quatro anos, Reis é beneficiário da Prevent Senior, plano para o qual migrou "por uma questão de custo-benefício". "Com o passar da idade, outros convênios se tornam muito caros. É impagável", explica Lúcia Reis, casada com Carlos há 33 anos e com quem tem duas filhas.

Oitava maior operadora de assistência em saúde do país, a Prevent Senior está envolvida num escândalo que aponta para a prescrição em massa de remédios sem eficácia no tratamento da Covid-19, para o tratamento de pacientes como cobaias e para fraudes em prontuários e atestados.

Da primeira visita ao pronto-atendimento, Carlos voltou para casa com um "kit Covid". Dos retornos, foi mandado para casa, com mais "kit-Covid", mesmo quando sua tomografia indicava 50% do pulmão comprometido pela doença.

Finalmente internado, foi submetido, sem consentimento, a um tratamento experimental com flutamida, medicação indicada para câncer de próstata. Teve dados alterados em seu prontuário. Enquanto isso, os tratamentos que podiam, de fato, beneficiá-lo eram deixados de lado.

 

"Eles me davam kit Covid, mas não me davam oxigênio!", revolta-se Carlos. "Como é que eu iria melhorar se eu não conseguia nem respirar?", diz ele, que ficou com sequelas graves, difíceis de dissociar do tratamento conduzido pela operadora de saúde.

Em nota, a Prevent Senior informa que Carlos "teve todo o suporte necessário durante seu tratamento".

Quatro meses depois de receber alta hospitalar, Reis apresenta lesões pulmonares, insuficiência renal e paralisia do braço direito. Faz fisioterapia e inalações duas vezes ao dia.

"Eu poderia ter morrido se não fosse a minha família", relata, com a voz embargada e lágrimas nos olhos.

Carlos só se lembra de trechos da história porque esteve inconsciente na maior parte dela.

Ela começa no último dia 9 de março, quando Carlos sentiu os primeiros sinais de mal-estar, e o Brasil bateu mais um recorde de mortes por Covid-19 (1.954 só naquelas últimas 24 horas). Foi ao pronto-socorro de uma unidade da Prevent na zona oeste de São Paulo e voltou para casa com seu "kit Covid" mesmo antes do resultado do teste para a confirmação da doença.

Começou de imediato o tratamento recomendado pelo médico e fornecido pelo próprio plano. Ele levava hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da síndrome respiratória provocada pelo Sars-CoV2.

A família estava enlutada pela morte do irmão de Lúcia, poucos meses antes, vítima da Covid. "Tinha ouvido falar que era uma gripezinha. Mas vi que muita gente tinha morrido. Não sabia qual seria o meu futuro. Deu muito medo", lembra Carlos.

Em vez de melhorar, Carlos seguiu com febre alta e teve a piora na tosse e na oxigenação do sangue -agora mensurada por um oxímetro comprado em farmácia. Voltou ao pronto-atendimento. E mais de uma vez. Mas só foi internado quando a tomografia acusou 70% do pulmão comprometido.

Aguardou mais de 24 horas por um leito, sentado numa cadeira do pronto-socorro. E, 12 dias depois dos primeiros sintomas, foi internado no hospital Sancta Maggiore Dubai, da Prevent Senior, na zona sul da capital paulista.

O país vivia uma nova onda de casos de Covid-19 que poderia ser melhor definida como um tsunami, puxada pela disseminação de uma nova variante surgida na região Norte. Os números de infecções e de mortos escalonavam dia a dia, assim como as filas por leitos de UTI em hospitais. O Brasil contabilizava 72 mil pessoas mortas por Covid fora de leitos de terapia intensiva, o que indicava o grau de colapso do sistema de saúde. Um a cada quatro mortos do mundo era brasileiro.

"Estava muito mal. Foi meio violento o que eu tive. Disseram que era a nova variante", conta Carlos. "Mas me internaram e me deixaram num canto", diz ele. O mesmo canto que foi cenário das suas últimas memórias antes de um apagão.

"Meu pai levou um oxímetro e um termômetro pra internação. E, como a família não podia entrar na internação por causa dos protocolos, ele mesmo checava temperatura e saturação do sangue e mandava áudios de WhatsApp pra gente com essas informações", lembra a filha mais velha, a veterinária Bianca Reis, 28.

"Ele sempre estava com febre alta, mas o relato das equipes era de que ele não tinha febre. Ele percebeu que ocorriam erros. Foi desesperador", conta ela.

"Querer respirar e não conseguir é uma coisa que machuca muito a gente", traduz o químico aposentado. "Dá vontade de se jogar para que alguém te socorra."

A família decidiu contratar um infectologista indicado por amigos para uma avaliação externa do quadro clínico de Carlos.

Em laudo, o médico particular descreveu ter encontrado Carlos sem monitoração, com saturação de 78% (quando o normal é acima 95%), febre, dificuldade para respirar e em "estado de consciência rebaixado". "Sem os cuidados necessários, mesmo diante da gravidade do quadro", concluía o médico particular. Para ele, Carlos já deveria estar intubado faz tempo.

Diante da resistência do colega responsável imediato por Carlos, o infectologista procurou o diretor do hospital para falar do risco de morte do paciente. "Em 5 minutos, uma semi-UTI foi montada no quarto onde ele estava", descreve o laudo médico. Naquela mesma noite, Carlos foi para a UTI. E o Brasil bateu novo recorde de mortes por Covid-19: 3.600 óbitos em um só dia.

Dias depois, ao ver resultados ruins de exames do pai pelo aplicativo da Prevent Senior, Bianca questionou o médico plantonista sobre as condutas adotadas.

Só então ela descobriu que Carlos deveria estar na posição de pronação, em que o paciente fica de barriga para baixo para melhorar a ventilação de seus pulmões. Não estava porque essa posição requer o uso de um medicamento que estava em falta, o bloqueador neuromuscular (BNM). Sem pronação, lhe disse o infectologista particular, o quadro gravíssimo de Carlos não poderia ser revertido.

"Sobre a ausência do medicamento, o plantonista da Prevent disse não ter o que fazer. E falou: agora é esperar. Na hora eu pensei: 'só se for esperar para ele morrer'. E comecei a procurar leito de UTI com o medicamento num outro hospital", conta Bianca.

Encontrou esse leito no Hospital Israelita Albert Einstein, e recorreu à ajuda de amigos e familiares para o pagamento caução necessário a uma transferência naquelas condições.

"Quando você contrata um plano de saúde, pensa que esse plano vai fornecer o tratamento de que você precisa. Mas o hospital não nos deu opção", alega Bianca. "A gente ficou meio em choque com essa situação toda."

Na madrugada do dia 31 de março, Carlos chegou ao Albert Einstein. Foi medicado e posicionado corretamente, e iniciou uma sequência de 30 dias de hemodiálise contínuos, que já deveriam ter começado na unidade da Prevent, segundo o médico informou à família.

Aos poucos, lentamente, começou a melhorar.

Quando a família teve acesso ao prontuário médico da Prevent Senior, outro susto. "Vimos marcada a administração de flutamida. E nós não havíamos assinado nenhum termo de consentimento pra isso", conta Bianca.

A flutamida não tem estudo sobre eficácia contra Covid nem indicação da Anvisa e, em 2004, já havia causado uma série de mortes por falência do fígado durante tratamento para acne em mulheres. O uso da medicação em pacientes com Covid está sendo investigado pelo Ministério Público de São Paulo.

Ao sair do hospital, a família deixou pendurada uma cobrança de R$ 1.926.399,65. Entrou na Justiça para que a Prevent Senior arque com essa conta.

No último dia 30 de setembro, foi publicada decisão liminar (aquela em que cabe recurso), o juiz Guilherme Santini Teodoro, da 30ª Vara Cível de São Paulo, determinou que a Prevent Senior tem cinco dias para depositar o valor em juízo a ser usado para pagar a conta do Einstein, sob pena de multa de 1% ao dia.

A Prevent Senior informou, por meio de nota, que "discorda das alegações que embasam a ação judicial". Informa ainda que, se a família tivesse autorizado a abertura do prontuário médico à Folha, poderia "rebater ponto a ponto as críticas aos procedimentos médicos que foram adotados para garantir o bem-estar do sr. Carlos". A Prevent Senior recorrerá da liminar judicial.

"A gente sabe que meu pai só está vivo porque nós tomamos as medidas necessárias na hora certa", comemora Bianca. "Quem tomou as rédeas do tratamento correto e do destino do meu pai foi a família. Mas não deveria ser assim: a gente ser responsável por procurar um hospital com medicação, por realizar a transferênciaCuidar do meu pai era responsabilidade da Prevent."

Acostumado a casos de cobrança da cobertura de custos contra operadoras de saúde, o advogado Flávio Rocha, especialista em direito médico hospitalar, diz ter se surpreendido.

"Eu comecei a me assustar vendo o prontuário", admite. "Eram muitas as semelhanças do caso concreto com as denúncias recentes que ocorreram com a Prevent Senior, em especial a prática de fazer essas experiências com as pessoas", diz ele. Rocha explica que a lei de planos de saúde (9.656/98) e a Agência Nacional de Saúde (ANS) determinam que a operadora precisa cobrir os custos de tratamento especializado que não oferece em sua rede credenciada e que o paciente obtiver fora dela.

"Trata-se de uma situação muito triste e que corrobora com as denúncias que vêm sendo feitas contra a operadora. Foram feitas coisas absurdas. O Carlos nasceu de novo."

É bem essa a sensação de Carlos ao retomar as pequenas coisas da vida: o primeiro pão com manteiga depois de tanto tempo internado, a companhia das filhas e de Lúcia no Dia dos Pais que tinha tudo para não acontecer.

"São detalhes que a gente passa a dar valor depois de perder tudo", diz o sobrevivente.