MPF vê risco à liberdade de expressão e recomenda que Inep desista de 'tribunal ideológico' do Enem
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão considerou que o ato pode representar ataque à liberdade de expressão e ao pluralismo de ideias
O MPF (Ministério Público Federal) recomendou que o governo Jair Bolsonaro (sem partido) se abstenha de criar uma espécie de "tribunal ideológico" para questões do Enem. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão considerou que o ato pode representar ataque à liberdade de expressão e ao pluralismo de ideias.
A Folha de S.Paulo revelou em junho que o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) tinha pronta uma portaria que estabelece uma instância permanente de análise ideológica dos itens das avaliações da educação básica. O documento prevê veto a "questões subjetivas" e atenção a "valores morais".
O posicionamento da procuradoria vem após questionamento do PSOL com base nas revelações da reportagem. Em julho, o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, mentiu ao negar na Câmara que iniciativa sequer existisse, o que contradiz os registros dos processos internos.
A procuradoria, no entanto, confirma a tramitação dos processos, como já mostrado pela Folha, bem como a existência da minuta que "estabelece critérios de avaliação e institui a Comissão de Revisão dos processos de Avaliação da Educação Básica". Questionado, o MEC e Inep não responderam.
O MPF considerou que "a pretensa neutralidade ideológica da proposta, na verdade, pode esconder um conjunto de ideias contrárias ao pluralismo de ideias e à liberdade de expressão".
"A liberdade de expressão protege simultaneamente os direitos daqueles que desejam expor suas opiniões ou sentimentos e os direitos do público em geral de ter acesso a essas expressões", diz o texto da procuradoria, encabeçado pelo subprocurador-geral da República Carlos Alberto Vilhena.
A recomendação do MPF dá cinco dias ao Inep, contados a partir da última sexta-feira (1º), para que o órgão informe se seguirá ou não com o plano de criar essa instância de análise ideológica da prova. A ausência de uma resposta "será interpretada como recusa, passível da adoção de medidas judiciais", diz o texto.
O documento diz ainda que a ideia do governo Bolsonaro, revelada pela Folha, relaciona-se ao projeto "Escola sem Partido", já declarado inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Ao analisar a situação, a procuradoria ainda pontuou que a "doutrina convencionou chamar de 'antiintelectualismo' o movimento que se manifesta sob diversos meios a partir de ataques diretos ao ensino com cortes orçamentários não justificados, expurgo de professores tidos como inimigos e proibição de discussão de questões de gênero ou relacionadas às minorias em geral".
O plano de criar uma comissão de revisão ideológica surgiu após o ministro ter afirmado, em outra audiência na Câmara, em 9 de junho, que desistira de conferir pessoalmente as questões do Enem. Aos congressistas, ele não citou, no entanto, planos para uma nova instância de análise das questões.
O processo no Inep que trata do tema, e onde consta a minuta da portaria, foi criado já no dia seguinte desse encontro na Câmara, em 10 de junho. A encomenda foi do próprio ministro, como mostram os documentos obtidos pela reportagem.
A área técnica do Inep se posicionou contrária à criação dessa nova instância por já haver processos técnicos consistentes de elaboração, escolha e revisão dos itens. São sete fases atuais de revisão de questões e os participantes desses processos são convocados por chamamento público, o que garante a impessoalidade do processo.
A nova portaria daria ao próprio presidente do Inep o poder de escolher pessoalmente os participantes externos dessa comissão. Servidores do instituto ficaram apreensivos com o perfil desses membros. Eles viram como único objetivo da nova instância o controle ideológico da prova.
A nova comissão teria de barrar "questões subjetivas" e que afrontem "valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade", segundo a minuta da portaria que criaria o grupo.
O embate ideológico é a principal marca da gestão Bolsonaro na área da educação. O governo tem aversão a questões que abordem, por exemplo, qualquer discussão de gênero.
Em 2019, o Inep já havia criado uma comissão que censurou questões do Enem –o que é citado pela procuradoria. Elogiada pelo Bolsonaro, a ditadura militar (1964-1985), por exemplo, não foi mais abordada no exame. Agora, o plano era que essa nova comissão fosse permanente.
O tema havia sido colocado como prioridade pela equipe do ministro. Quando a reportagem foi publicada, a ideia era publicar o ato nos próximos dias.
Mas o tema perdeu esse ritmo após repercussão negativa. A Defensoria Pública também questionou na Justiça o plano para criar o tribunal ideológico permanente.
O Enem é a principal porta de entrada para o ensino superior público. O conteúdo é usado como referência para o que é ensinado nas escolas de ensino médio.