Adaptação: já sabemos lidar com o retorno completo das atividades sociais?
A quebra de rotina imposta por restrições para conter a Covid-19 ainda não foi completamente superada e representa um desafio diferente para cada pessoa
O mundo totaliza quase 5.000.000 (cinco milhões) de mortes pela Covid-19. O número, escrito de uma ou de outra forma, indica um período que será lembrado para sempre na história da humanidade, um marco temporal que deixa feridas abertas e muitas sequelas. O Brasil, destaque na pandemia pela forma desgovernada que encarou a crise sanitária, já soma mais de 600 mil mortes pela doença.
Neste momento, os números, tanto de mortes quanto de casos registrados em 24 horas, apontam para uma situação menos pior do que a que tivemos nos meses iniciais tanto de 2020 quanto de 2021. Essa estabilização, que ainda está longe de ser ideal - ainda são notificados, em média, 437 óbitos diariamente-, é como um passaporte para uma volta ao que jamais chamaremos novamente de normalidade.
O retorno da vida cotidiana, com escola, faculdade, trabalho presencial, confraternizações e bares parece, finalmente, que será mantido. Ficamos por tanto tempo na indecisão acerca de flexibilizações alternadas com picos de casos e mortes pela Covid-19 que a socialização foi impactada. Como retornar? Há uma fórmula? Todos estão sentindo o impacto de não saber conversar por receio ou de conversar demais por ter muito para atualizar? Quem, por privilégios, passou pela pandemia conseguindo manter isolamento e trabalhando com restrições acaba por sentir o sabor de “pôr o pé na rua” só agora.
Pessoas que exercem funções sociais de possível suspensão e adaptação à disponibilidade remota estão passando pela pandemia, em sua maioria, conseguindo manter com mais segurança o distanciamento social. Diferente de quem trabalha no supermercado, na limpeza pública, na distribuição de alimentos, no transporte coletivo, na saúde e em tantos outros serviços essenciais. O trabalhador que ficou condicionado ao modelo remoto ainda não se adaptou completamente ao retorno das atividades.
De acordo com a psicóloga Andreza dos Anjos, o receio pelo retorno existe e tem ligação com o quão rápida e drástica foi a chegada do isolamento imposto. “Essa possível volta vem acompanhada de muitos receios, muitos medos, porque essa nova rotina (criada durante o isolamento) estabeleceu algum tipo de proteção. Fomos, lá no início, obrigados a criar uma nova rotina. E, agora, é como se algo precisasse ir se desfazendo. É um processo de quebra, de coisas novas”, explica.
Impulsionada pela mudança drástica na rotina, a ansiedade se fez presente na vida de vários brasileiros que precisam lidar diariamente com todos os protocolos sanitários exigidos para uma boa convivência com o vírus.
De acordo com Andreza, essa necessidade de aumento dos cuidados potencializou casos de ansiedade no retorno do contato social: “O isolamento social é traumático. Algumas pessoas começaram a adquirir alguns hábitos de limpeza e isso foi se desencadeando, em alguns casos, para algum transtorno, alguma fobia, algum Toc (Transtorno obsessivo-compulsivo) por conta da limpeza e de precisar estar passando algo para se proteger”.
Camila Andrade, 26, passou por um período intenso no início da pandemia e demorou para se sentir segura ao sair de casa. Por trabalhar como engenheira em uma mina, no distrito de Pilar, na Bahia, ela já vivenciava um certo distanciamento social, pelas restrições de longinquidade da área onde trabalhava.
Durante os primeiros meses de pandemia, ela se manteve restrita ao perímetro do local de trabalho e só saiu para um atendimento médico, em agosto de 2020. “Eu só fazia trabalhar. Chegava em casa, via as notícias na televisão e ficava achando que iria morrer. Eu chegava, sentava na frente da TV e ficava vendo as notícias já pensando na minha morte na próxima semana”, lembrou Camila.
Para ela, a ansiedade se intensificou. “Nem todo mundo entende, têm pessoas que vivem esse 'hoje pode ser meu último dia', mas eu prefiro pensar que quero viver o futuro. Eu já sou uma pessoa muito agitada e desenvolvi alguns pontos de ansiedade e também de workaholic mesmo, me detendo ao trabalho para não pensar na pandemia”, comentou.
A pesquisa "Impacto Social do Confinamento pelo Surto de Coronavírus Covid-19 na América Latina – Brasil", da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília, identificou que cerca de 40% dos seus entrevistados relataram sentir maior aborrecimento e tendências a uma maior irritação ou ansiedade com mais frequência na pandemia.
No mesmo estudo, pesquisadores apresentaram que quatro, em cada dez brasileiros, relataram dificuldades para trabalhar, cuidar da casa ou relacionar-se com outras pessoas em decorrência de problemas emocionais no contexto do isolamento social.
Mas, no retorno, diferente do que as pessoas vivenciaram na chegada da pandemia, não é necessário passar por tudo de uma única vez, há tempo para que você possa escolher como voltar.
Para Andreza, uma mudança de hábitos pode ajudar no enfrentamento do medo da socialização. “Uma coisa que pode ser muito aliada nesse processo de retorno é tentar colocar algum exercício físico, como uma corrida, um alongamento, uma dança, nesse processo de tentar lidar com a ansiedade. É preciso construir novamente formas saudáveis de voltar, de retornar”, orienta a psicóloga.
De acordo com ela, caso ainda seja difícil lidar com a ansiedade e tantos outros problemas impulsionados pela pandemia, a ajuda profissional deve ser buscada. “A procura por terapia não precisa estar necessariamente ligada a uma crise (como a pandemia), mas as pessoas têm sentido muito mais a necessidade de falar sobre essas angústias que, inevitavelmente, foram despertadas”, sentencia Andreza.
Camila, por exemplo, decidiu acrescentar uma atividade física ao seu cotidiano como primeira ação na direção do tratamento dos problemas desenvolvidos na pandemia. “Quando fui ao atendimento médico, em agosto, decidi comprar uma bicicleta e foi a melhor coisa que fiz no ano passado. Eu comecei a sair do Pilar através da bicicleta, eu ia pedalar, fazer trilha no meio do mato, ver o mundo lá fora. Foi, literalmente, ver o mundo por outra perspectiva. Foi através da bicicleta que eu meio que me libertei da pandemia”, contou.
Mesmo com a melhora através da prática de exercícios, Camila sentiu necessidade de tratar suas travas psicológicas em terapia. “A partir do mês de maio, comecei a tratar da minha mente porque eu não estava bem, eu não estava me sentindo bem mentalmente e não entendia o porquê, não sabia o que estava acontecendo. Só depois comecei a me dar conta, lógico que com a ajuda profissional, de que eu estava desenvolvendo ansiedade”, confessou.
A busca por orientação profissional, de acordo com a psicóloga, é algo que registrou aumento perceptível na pandemia, mas que não trata apenas de problemas desenvolvidos pelo coronavírus.
“Uma escritora que se chama Maria Homem diz que pessoas chegam ao consultório com a pandemia como causa. A pandemia estimula as pessoas a virem, o isolamento social estimula as pessoas a virem e aí quando as pessoas começam a falar, de fato, elas passam a perceber que a pandemia está na superfície de tantos outros problemas internos”, informa.