Saúde

Ações buscam garantir a dignidade menstrual no País

O combate à pobreza menstrual ganhou destaque no Brasil

Alunas da Escola Técnica Ginásio Pernambucano, no Recife, idealizaram ação para disponibilização gratuita de absorventes nos banheiros da unidade de ensino - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco


Para você, o que seria um assunto tabu? Uma característica comum quando falamos sobre tais temas é que muitas vezes eles são pouco debatidos, ou até escondidos, diante da sociedade. E é justamente essa falta de diálogo e informações que faz com que até situações naturais, ou condições inerentes ao corpo humano, sejam muitas vezes esquecidas ou não tratadas com a devida importância. Esse tipo de caso, inclusive, costuma ser acentuado quando o assunto envolve especialmente questões do corpo feminino.

Nos últimos meses, um tema ganhou destaque no cenário nacional: o combate à pobreza menstrual, situação que atinge milhares de brasileiras. O termo é utilizado para caracterizar a falta de acesso a recursos e infraestrutura ou até ao conhecimento sobre os cuidados necessários com a própria menstruação.

Em maio deste ano, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) publicaram um relatório com um panorama sobre a realidade menstrual vivenciada no País. Intitulado como “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, o estudo apontou que 6,5 milhões de meninas moram em casas que não possuem ligação à rede de esgoto, 900 mil não contam com água canalizada em seus domicílios e 713 mil não têm acesso a banheiro ou chuveiro nas suas residências.

A médica ginecologista Natally Gayão destaca que é preciso romper tabus que ainda existem quando o assunto é menstruação - Foto: Divulgação

A falta de acesso a esses recursos básicos aliada ao pouco conhecimento sobre o próprio corpo faz com que a saúde feminina seja comprometida. Para a médica ginecologista Natally Gayão, é preciso que a sociedade supere os tabus que ainda imperam quando o assunto é menstruação.

“O tabu em torno da menstruação é enraizado na cultura brasileira, muitos mitos rodeiam o tema. Qual a mulher que nunca ouviu que o sangue menstrual é sujo, ou como algo que deve ser escondido, ou algo vergonhoso? Quem nunca pediu um absorvente emprestado como se contasse um segredo? Quanto mais informada sobre seu corpo, a menina consegue lidar melhor e com mais naturalidade sobre seus ciclos, sua menstruação, que nada mais é do que um processo fisiológico. Naturalizar a menstruação é um processo necessário, afinal mais da metade da população do planeta menstrua. Ao entender isso, a jovem mulher consegue lidar melhor com o estigma da menstruação e, com o tempo, esse tabu deve ser cada vez menor”, comentou.

Como explica a historiadora Thalyta Oliveira, os estigmas em torno da menstruação se originaram séculos atrás. “Iniciaram durante a Idade Média, época em que a mulher era tida praticamente como pária da sociedade, a Igreja Católica não via com bons olhos a menstruação. Tecidos, principalmente o linho, eram usados como absorventes e depois lavados e reutilizados. Como não havia calcinhas na época, as moças enrolavam os panos e prendiam como podiam quando estavam menstruadas. Só que, com uma certa frequência, esses "absorventes" caíam no chão e causavam grande alvoroço entre as pessoas ao redor. Os homens, em especial, os chamavam de ‘tampão monstruoso’”, explica.

Thalyta Oliveira, historiadora, explica as origens dos tabus em torno da menstruação - Foto: Divulgação

“As mulheres usavam noz-moscada ou pequenas bolsas de flores secas para esconder o cheiro do tecido encharcado de sangue. Esse pensamento acabou perpetuando, como algo impuro ou nojento. Tanto é que as mulheres começaram a ficar afastadas de atividades devido à menstruação”, acrescenta.

Diante de centenas de anos de tabus, o autoconhecimento torna-se um passo importante na busca pela saúde e pela dignidade íntima. “Conhecer seu corpo, conhecer seu ciclo e como tudo funciona deveria ser ensinado em casa, mas em muitas famílias essa conversa não existe. E, então, cabe à menina buscar por informações, que podem ser de qualidade ou não, muitas vezes gerando inseguranças, reforçando os tabus, acarretando em um descuido pessoal, como uma higiene inadequada e mau uso de produtos para o período menstrual”, alerta a ginecologista Natally Gayão.

Devido à falta de recursos, meninas e mulheres chegam a substituir o absorvente por itens prejudiciais: “A jovem precisa recorrer ao uso de substitutos aos absorventes como papel, jornal, roupas velhas e até sacos plásticos. O uso desses itens inadequados no período menstrual aumenta a chance de contaminação e consequentemente aumenta o risco de infecções no trato genital feminino”, explica a médica.      

A falta de condições mínimas para a manutenção da higiene e da dignidade menstrual muitas vezes extrapola os muros residenciais. Segundo o estudo realizado pela UNFPA e UNICEF, mais de 4 milhões de meninas não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas, o que inclui, além da falta de absorventes, o não acesso a instalações e artigos básicos, como banheiros e sabonetes.

Em Pernambuco, o Governo do Estado distribuirá gratuitamente, a partir de novembro, por meio do Programa de Educação em Saúde Menstrual, absorventes para as alunas da rede de ensino. De acordo com a Secretaria de Educação estadual, aproximadamente 200 mil estudantes estão matriculadas atualmente. Além disso, o programa prevê a realização de rodas de diálogos e palestras sobre temas ligados à saúde feminina.

A entrega gratuita do item de higiene já é realizada em municípios da Região Metropolitana do Recife (RMR) e do interior. Em Caruaru, no Agreste do Estado, a estimativa é que mais de 13 mil alunas sejam beneficiadas com o Programa Ciclo Digno, implementado pela prefeitura.

A prefeita de Caruaru, Raquel Lyra, destaca as ações do Programa Ciclo Digno - Foto: Flickr/Divulgação

“A gente encaminhou o projeto de lei para a Câmara [Municipal] ainda no primeiro semestre deste ano para garantir pudéssemos fazer a distribuição de absorventes na rede pública de educação. Aqui em Caruaru nós temos uma rede pública municipal de 43 mil alunos e a estimativa é que mais de 13 mil alunas serão beneficiadas, porque a gente fez a conta para aluna a partir de 10 anos contando com a educação de jovens e adultos”, detalhou a prefeita, Raquel Lyra. 

“É uma oportunidade de a gente transformando isso em política pública fazer algo que parecia tão lógico mas que não era tratado porque parecia ser um problema de mulher. Não é problema de mulher, é uma questão de saúde pública, é uma questão de desenvolvimento social, de respeito à cidadania”, destacou. 

A Prefeitura de Olinda, na RMR, também conta com programa semelhante. “A gente começou essa entrega desde o dia 27 de setembro. É um investimento de R$ 105 mil para o ano todo, os 12 meses, e é um direito para aproximadamente 6 mil estudantes da rede municipal”, comentou o prefeito, Professor Lupércio.

Em Olinda, como destaca o prefeito, Professor Lupércio, também há programa de distribuição gratuita de absorventes para alunas - Foto: Ed Machado/Arquivo Folha de Pernambuco

“A gente sabe justamente da importância disso e os absorventes serão distribuídos em 64 escolas de Olinda. A gente sabe que entre uma e dez meninas no mundo têm a vida escolar impactada pela falta, somente, do absorvente. Porque infelizmente o índice de pobreza é muito grande e nem todo mundo tem essas condições de ter esse acesso. Muitas vezes a menina vai para a escola desprevenida ou despreparada e muitas vezes nem vai porque realmente falta acesso, ou seja por causa das condições financeiras da família”, acrescentou.

Em setembro, o Senado Federal aprovou o projeto de lei 4.968/2019, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT-PE), que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual e prevê a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes dos ensinos fundamental e médio e mulheres em situação de vulnerabilidade social. No mês anterior, a Câmara dos Deputados também já havia aprovado o PL.

“O projeto foi aprovado pela Câmara e pelo Senado, pelos dois por unanimidade. A votação chegou a ser bem simbólica”, comentou Marília Arraes. “Esse é um assunto que vem sendo debatido fora do Brasil há muito mais tempo, eu comecei a acompanhar esses debates e ainda em 2019 dei entrada no projeto para que garantisse a dignidade menstrual, que é algo que vem também diminuir um pouco a desigualdade de gênero, inclusive entre estudantes”, acrescentou. 

A deputada Marília Arraes é autora do projeto de lei que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual - Foto: Arthur de Souza/Arquivo Folha de Pernambuco

“Quando a gente vê que muitas das alunas, mesmo crianças ou adolescentes, são cobradas a realizar atividades domésticas, coisa que não acontece com os meninos, a gente vê que a falta de acesso à higiene menstrual, à higiene feminina, aumenta ainda mais essa desigualdade porque elas simplesmente deixam de ir para escola”, comenta a a parlamentar. 

Como destaca a deputada, o objetivo é que o programa se transforme em política de saúde pública: “A gente considera que esse projeto seja o primeiro passo para universalizar o acesso a artigos de higiene menstrual para todas as mulheres. Porque nesse se trata da distribuição para estudantes, para mulheres encarceradas, meninas cumprindo medidas socioeducativas, mulheres em situação de rua, mas o nosso objetivo é que haja distribuição universal, como existe a distribuição de preservativos, como uma política de saúde pública mesmo”.

A distribuição gratuita de absorventes a pessoas de baixa renda foi um ponto vetado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, quando sancionou a Lei 14.214/21, originária do PL 4968/19. O veto será analisado e pode ser derrubado pelo Congresso Nacional. “A gente precisa se colocar no lugar dessas mulheres porque quando a gente vê uma mulher que precisa estar ali sustentando seus filhos sozinha e que de repente ela precisa escolher entre comprar um quilo de feijão ou um pacote de absorvente, com certeza ela vai comprar comida para sustentar os seus filhos”, reflete a deputada. 

Como explica o relatório publicado pelas agências internacionais da ONU, a pobreza menstrual é acentuada por fatores que envolvem a desigualdade racial, social e de renda. Segundo o estudo, a chance de uma menina negra não possuir acesso a banheiros é quase três vezes maior do que a chance de encontrarmos uma menina branca nas mesmas condições. Além disso, enquanto cerca de 24% das meninas brancas residem em locais avaliados como não tendo serviços de esgotamento sanitário, quase 37% das meninas negras vivem nessas condições.

Para a presidente da Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Isabelita Fradique, é importante que existam mulheres nos espaços de poder com voz para defender ações voltadas à dignidade feminina.

Presidente da Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Isabelita Fradique destaca a importância de existir mulheres nos espaços de poder - Foto: Divulgação

“A pobreza menstrual é uma realidade que vai na raiz da desigualdade social como meio cultural de não tratar as necessidades femininas, sendo vistas como um tabu, afetando diretamente o rendimento na escola, no trabalho, e as oportunidades de empregos, principalmente se pensarmos nas mulheres periféricas e nas mulheres negras ”, disse.

“A Organização das Nações Unidas já reconheceu que é um direito das mulheres à higiene menstrual e é uma questão de saúde pública e direitos humanos. Então tudo isso a gente está voltado para pensar nessa  pauta”, completou. Durante o mês de outubro, a OAB-PE realizou campanha para a arrecadação de absorventes, com ponto de coleta na sede da Ordem, no centro do Recife, e nas 25 seccionais existentes no Estado. 

Na Escola Técnica Estadual Ginásio Pernambucano, no Recife, alunas do 2º ano do Ensino Médio iniciaram uma ação solidária para a disponibilização gratuita de absorventes nos banheiros da unidade. “A gente estuda em uma escola integral, passa o dia inteiro aqui e muitas vezes esquece [o absorvente] ou acaba. Com esse local, não fica aquele constrangimento de ter que estar pedindo”, comenta a estudante Hadassa Oliveira, de 16 anos.

A professora Conceição Xavier e as alunas Hadassa Oliveira e Maria Eduarda Carvalho idealizaram ação para a disponibilização gratuita de absorventes nos banheiros da escola - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

“Assim ninguém precisaria faltar aula. Caso não tivesse absorvente em casa, teria na escola”, completou a aluna Maria Eduarda Carvalho, também de 16 anos.

A iniciativa foi idealizada junto à professora Conceição Xavier, que atua no magistério há mais de 25 anos. “As meninas organizaram o projeto, foram de sala em sala explorar a importância da higiene feminina nesses dias de menstruação e, então, fizemos uma caixa solidária para colocar nos banheiros femininos”, contou.

A professora Joyce Freitas destacou que a ação incentivou mais estudantes a pesquisarem sobre o combate à pobreza menstrual - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

A ação incentivou mais estudantes, como explica a professora Joyce Freitas: “As meninas de outras salas começaram a pesquisar, pediram para falar sobre a temática. Isso conscientizou as outras turmas e outras meninas se sentiram acolhidas pelo projeto delas”. 

Outro ponto levantado em sala de aula diz respeito à taxação dos absorventes higiênicos. “Muitas meninas passaram por situações constrangedoras e não sabiam que existia a questão da pobreza menstrual, ou que o absorvente é um item que é muitas vezes tributado como cosmético e não considerado um item de necessidade básica. Então, o projeto das meninas acabou alertando e chamando a atenção para algo que não era discutido nem na escola e nem em casa”, finalizou Joyce.

 

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