Isaac Karabtchevsky: 'Nelson Freire é um titã que jamais poderá ser imitado'
Maestro lamenta a perda do amigo e diz que pianista era capaz de 'colorir de forma pessoal o ambiente sonoro de uma partitura'
A morte de Nelson Freire deixa ainda mais pobre o cenário da música em nosso país. Dilacerado pelas duas quedas que o impediram de tocar por um longo período, Nelson não conseguiu superar o silêncio, a incapacidade de traduzir ao piano a sua angústia. Para um músico de sua grandeza, ficar longe do instrumento que é a extensão de seu corpo e a tradução de sua alma pode soar como uma sentença. Nelson se foi e ficamos todos, amigos, músicos e público, consternados, profundamente tristes. A música perde um titã.
Ao meu redor, a natureza neste dia de chuva chora o infortúnio. Tornamo-nos mais pobres e o Brasil perde uma de suas grandes referências no terreno da música. Estou arrasado!
Como definir um gigante? Observar o lado virtuoso? A incrível técnica que o possibilitava não perder uma só nota ou o imenso universo espiritual que dele emanava?
Para mim, tendo trabalhado com ele praticamente a vida toda, em concertos e turnês ao exterior, fazer música juntos representava sempre uma descoberta. Digo descoberta porque nunca uma interpretação do Nelson era exatamente igual a outra. Ele sempre era capaz de colorir de forma pessoal o ambiente sonoro de uma partitura.
Lembro-me perfeitamente do “Concerto em Lá”, de Schumann. Era como se desfrutar de passagens no mais tenro dos pianíssimos até o rigor das cadências. Além disso, Nelson conseguia nesse concerto, e em tantos outros, imprimir uma sonoridade que provinha da aura que sempre o acompanhava. Por isso, por meio dessa aura, era possível, num simples toque ao piano, saber quem o fazia. Nossa vida comum foi para a mim a revelação do artista maior. Aquele que jamais poderá ser imitado. Fica em paz, Nelson.
*Isaac Karabtchevsky é maestro