Competência, proficiência e imprensa: a reação da CPI contra o antissistema
A experiência com comissões parlamentares de inquérito fez com que parte da sociedade a olhasse com certa desconfiança. Assim, antes da instauração de uma necessária investigação sobre os desencontros políticos em torno do combate à pandemia, a prevalência de qualquer comissão sempre esteve associada a uma resultante festiva, digna de ser comemorada diante dos "rodízios de pizzas". Some-se a essa condição risível, um sentimento geral e histérico, que fizeram indivíduos se posicionaram como adeptos do antissistema, postura sobrevivente do processo eleitoral de 2018.
Desse senso, extrai-se uma clara defesa que nega os valores políticos, dos partidos aos mandatários da representação popular. Nessa linha de contestação, se instituições do establishment político costumam estar sob rejeição, o que dizer de comissões parlamentares compostas por indicações de lideranças partidárias contraditadas? De qualquer forma, restava então uma aposta no exercício do embate democrático, haja vista a urgência do tema. Valeria para isso o trâmite da instauração, o conteúdo investigado e aprovação do relatório final. Tudo dentro de um espírito nada festivo, pela memória das mais de 600 mil vítimas hoje contabilizadas.
Nessa configuração inicial, vista como adversa pela base governista e aliados (adeptos ou não das teses antissistema), cabem-me comentários gerais, antes mesmo que possa aqui enaltecer a importância da deflagração e dos resultados conquistados pela CPI. Afinal, algumas reações identicadas são mesmo descabidas. Atenho-me a dois pontos, para difundi-los agora nesta minha análise.
Em primeiro, parece-me estranha e absurda a crítica, se especifica ou geral, de ser a CPI uma espécie de "tribunal político". É óbvio que assim seja, pois se tem em questão um parlamento, representantes delegados pelo voto popular, retaguarda constitucional e, consequentemente, uma investigação que irá se pautar pela representatividade política. Evidente que quanto mais o conteúdo investigado se reforça de provas técnicas, o resultado conquistado, mesmo que diante da expressão política que lhe sustenta, terá um outro reconhecimento. Pelo menos, da parte da sociedade que faça uma leitura menos ideologizada. O outro aspecto, como decorrência natural desse viés político, é querer tratar a exacerbação dos embates como teatro ou circo. Independente do respeito às artes e ao controle emocional que deve fazer parte do repertório parlamentar no enfrentamento do contraditório, política se faz em cima de debates geralmente acalorados. Se tudo ocorre dentro do roteiro da racionalidade, querer transformar a discussão política democrática como elemento desprezível, para daí se fazer valer a supremacia de uma verdade supostamente absoluta, isso é mero pretexto. Portanto, usar argumentos genéricos para "desconstruir" uma CPI legítima e legal, representou apenas a última reação de defesa, diante de tantos erros e omissões cometidos.
No entanto, o que me cabe aqui é opinar sobre o êxito da CPI. Não apenas pelo enorme e importante conteúdo da investigação, que permitiu resultados como a comprovação da falência do tratamento precoce, o avanço da imunização, as denúncias sobre as compras de certas vacinas e o caso estarrecedor da empresa paulista de plano de saúde, que tratou dos seus clientes idosos de modo temerário. Tão importante quanto tais conquistas foram três situações que formam as letras da sigla da comissão: competência, proficiência e imprensa.
Competência pelo bom exercício da atividade parlamentar da maioria dos seus integrantes, que apesar de um deslize aqui e outro acolá, conseguiram o objetivo. Mesmo que se registrem os senadores que também surpreenderam pela dedicação, prefiro consagrar o mérito maior a quem sequer foi componente da comissão: a bancada feminina. Um primor de atuação, onde ressalvo a função exponencial da brilhante Senadora Simone Tebet. Dedicada, precisa e elegante, até quando foi agredida pela estupidez misógina de um ministro depoente. Nesse embalo, cabe ainda o registro da coragem feminina nos depoimentos da médica Luana Araújo e da advogada Bruna Morato, ambas contundentes e decisivas.
Em complemento, a proficiência se efetiva no material investigativo e no resultado do relatório, que não só atenderam às expectativas, como servirá de um verdadeiro registro histórico, para conhecimento dessa etapa tão trágica da vida brasileira. Por fim, também por ressalvar a legitimação do papel da imprensa, que agora se convencionou ser chamada de tradicional. No geral, buscou operar com base na informação segura, testada e comprovada, em respeito aos valores científicos e ao que se mensurava noutros quadrantes de um mundo igualmente transtornado. Até pela inadmissível ausência do Ministério da Saúde controlar os números e se mostrar transparente para a sociedade, a imprensa foi competente na ocupação desse espaço. E ainda houve quem garantisse famigerados "likes" para amadores com incontinência digital.
Enfim, a CPI foi o exercício lúcido de um sistema político que, comprometido com o interesse maior da sociedade, alcançou todo crédito projetado. Que o digam os parentes das mais de 600 mil vítimas, que tiveram nessa reação um alívio no luto e/ou na orfandade.
*Economista e colunista da Folha de Pernambuco
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