Rússia

Putin estabelece uma 'ditadura' cada vez mais repressiva, diz fundadora de ONG russa

Desde 11 de novembro, a ONG mais antiga do país, símbolo do movimento de democratização lançado no declínio da União Soviética, está ameaçada de liquidação judicial

Presidente da Rússia, Vladimir Putin - Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP

A ameaça de dissolução que pesa sobre a ONG Memorial, pilar da defesa dos direitos humanos na Rússia, mostra a aceleração "repentina" da deriva ditatorial do regime do presidente Vladimir Putin, considera uma das fundadoras da organização. 

“O fato de a situação se agravar de forma abrupta e a ditadura se tornar cada vez mais repressiva, de forma tão assumida, foi inesperado”, admite em entrevista à AFP Irina Shcherbakova, 72 anos, historiadora que participou da criação da Memorial em 1989. 

Desde 11 de novembro, a ONG mais antiga do país, símbolo do movimento de democratização lançado no declínio da União Soviética, está ameaçada de liquidação judicial. 

A organização, que reúne cerca de cinquenta entidades, é acusada de ter violado "sistematicamente" a lei dos "agentes estrangeiros", classificação que lembra a dos "inimigos do povo" da era soviética.

Esta lei obriga as ONGs suspeitas a cumprirem inúmeras formalidades burocráticas, sob pena de serem banidas ou sofrerem sanções penais. 

O centro de proteção dos direitos humanos do Memorial é acusado ainda de defender "atividades extremistas e terroristas" por publicar uma lista de prisioneiros políticos por motivos religiosos.

Mensagem ao Ocidente

Com a liquidação do Memorial - as audiências do tribunal estão marcadas para novembro - as autoridades russas dizem que estão "prontas para usar toda a força, toda a violência necessária" e, assim, demonstrar "que ninguém está protegido, que 'não há tribunal, não há lei'", diz Irina Shcherbakova. 

A ofensiva judicial surpreende uma sociedade civil que nos últimos meses assistiu ao envenenamento e prisão do principal opositor do Kremlin, Alexei Navalny. Meios de comunicação foram classificados como "agentes estrangeiros" e opositores excluídos das eleições legislativas, entre outras medidas.

Irina Shcherbakova não tem ilusões e teme que a decisão de proibir o Memorial "já esteja tomada", mesmo antes da audiência de 25 de novembro no Supremo Tribunal Federal. 

Desde a sua fundação, o Memorial documenta incansavelmente os crimes da URSS, recolhendo milhares de arquivos, objetos e testemunhos para as suas exposições.

Ao mesmo tempo, a ONG luta pela proteção dos direitos humanos no país. 

A instituição se destacou principalmente por investigar os abusos cometidos pelas forças chechenas e russas durante as guerras da Chechênia das décadas de 1990 e 2000. 

A organização tinha como alvo o poderoso líder checheno Ramzan Kadyrov e seus homens, acusados de execuções extrajudiciais, tortura e sequestros.

Em 2009, a sua representante nesta república do Cáucaso, Natalia Estemirova, foi raptada e assassinada impunemente. 

Mais recentemente, no outono de 2020, um de seus historiadores, Yuri Dmitriev, foi condenado a 13 anos de prisão em um caso de "violência sexual" denunciado como uma armadilha para puni-lo por sua investigação sobre a repressão stalinista.

A militante se consola dizendo que graças aos avanços tecnológicos do século 21, milhares de documentos sobre a memória do Gulag são digitalizados e podem ser consultados online e, portanto, é "impossível" destruí-los. 

Porém, Shcherbakova teme a disseminação acelerada na opinião pública, sob a influência do Kremlin, de "falaciosos mitos patrióticos" que exaltam o poder da URSS e ignoram o terror soviético e seus milhões de vítimas. 

“Este é o terrível legado da ditadura stalinista e do Gulag: a atomização da sociedade, o individualismo e o cinismo”, afirma.