Questão Racial

Pardos se reconhecem cada vez mais como negros no Brasil

O Brasil, com 213 milhões de habitantes e a maior população negra fora da África, celebra no sábado (20) o Dia da Consciência Negra

A diversidade racial no Brasil - Pexels

Antigamente, "quando nascia uma criança mais clara era motivo de comemoração", lembra Bianca Santana. Mas hoje, aos 37 anos, ela se reconhece plenamente como mulher negra.

Quando era pequena, sua avó, baiana, com a pele mais escura do que a dela, pediu que ela prendesse o cabelo em um coque muito apertado "senão ficava parecendo essas neguinhas". 

"Às vezes, ela colocava o braço dela ao lado do meu mostrando o clareamento" resultante da miscigenação, conta à AFP. Foi só aos 30 anos que Bianca finalmente decidiu usar um penteado afro.

Autora do livro "Quando me descobri negra", publicado em 2015, Bianca afirma que cada vez mais pessoas pardas estão adquirindo essa consciência no Brasil.

"Os pardos estão cada vez mais negros, cada vez menos alisam o cabelo, cada vez mais assumindo uma identidade negra", analisa. 

O Brasil, com 213 milhões de habitantes e a maior população negra fora da África, celebra no sábado (20) o Dia da Consciência Negra.

O país, o último das Américas a abolir a escravidão, em 1888, é marcado pelo racismo estrutural, com menos de 5% de executivos negros nas 500 maiores empresas brasileiras, apesar de representarem a maioria da população. Além disso, há diferenças salariais significativas com os brancos, ainda que com as mesmas qualificações.

Os negros são, ainda, a grande maioria entre os desempregados e os moradores das favelas.

O mito da "democracia racial"

Para o IBGE, a população negra é a soma dos pretos e pardos. Estes dados se baseiam na "autoidentificação", forma como as pessoas se definem a si próprias nos formulários oficiais.

O último censo oficial, de 2010, mostrou pela primeira vez que a população negra era majoritária no país, com 43,4% de pardos e 7,5% de pretos. No censo do ano 2000, mais de 53% dos brasileiros disseram ser brancos. 

As pesquisas trimestrais realizadas pelo IBGE com uma amostra representativa da população confirmam essa tendência nos últimos anos. 

A mais recente, do segundo trimestre de 2021, reporta 45,9% de pardos, 8,8% de pretos e 44,2% de brancos.

"Tem um trabalho muito importante dos movimentos negros de ampliar a conscientização sobre a negritude no Brasil, porque o Brasil foi fundado sobre esse mito da democracia racial, de que não há racismo, que estamos todos misturados", diz Djamila Ribeiro, filósofa e autora do livro "Pequeno manual antirracista". 

Esse mito, acrescenta, "dificultou inclusive o entendimento das pessoas negras se verem como negras".

"A cor do pecado"

Para Roberta Calixto, analista de treinamentos e ações afirmativas no Instituto de Identidades do Brasil (ID_BR), que trabalha por uma maior inclusão da população negra no mercado de trabalho, as políticas de cotas implementadas gradualmente nos últimos 15 anos marcaram um ponto de inflexão. 

"Até então, a gente tem dentro do cenário brasileiro uma ideologia de branqueamento porque crescemos com uma ideologia de que ser branco é a meta, que precisa se identificar como branco porque ser uma pessoa negra é pejorativo", explica. 

"Com as cotas, passamos a ter um reconhecimento maior das pessoas negras. Sem dúvida houve uma inversão de valores. Passamos a ter um reconhecimento maior das pessoas negras; pela primeira vez, passa a ser interessante se dizer negro", insiste esta mulher parda de 30 anos, que lembra ter ouvido sua mãe dizer que ela tinha que "ser três vezes melhor do que qualquer pessoa para ser considerada igual" em uma sociedade marcada pelo racismo. 

Henrique Vieira, pastor evangélico de 34 anos, filho de uma mulher branca e um homem negro, reconheceu tarde sua negritude, assim como Bianca Santana.

"Tinha um livro de evangelização quando era criança que dizia que a cor preta era a cor do pecado e a cor branca, a cor da santidade", lembra.

"Até a minha adolescência, não me identificava como negro, mas como 'moreno'. Mas me reconhecer como um homem negro foi uma conquista ao longo da vida (...) e pude identificar melhor o peso do racismo sobre o meu corpo, minha memória e minha subjetividade", reflete.