Consciência Negra: profissionais de saúde negros buscam representatividade
Desejo é de ocupar o espaço profissional, deixar de ser exceção e diminuir desigualdades sociais
Você já ouviu falar em Teste do Pescoço? Nada mais é do que uma forma casual para avaliar a proporção de pessoas negras e brancas em um determinado local. Consiste simplesmente em olhar ao redor, para um lado e outro, e verificar quais grupos estão ocupando quais espaços. Por exemplo, em um hospital, quem são as pessoas que ocupam as carreiras de saúde? Quem são os médicos, dentistas, fisioterapeutas?
Segundo o levantamento Demografia Médica do Brasil, publicado em 2020 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Universidade de São Paulo (USP), apenas 3,4% dos concluintes de medicina em 2019 se autodeclararam da cor ou raça preta, 24,3% se declararam pardos e 67,1% se declararam brancos. Conforme a definição e nomenclaturas utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o somatório de pretos e pardos compõe a população negra nacional.
Os dados recentes do estudo apontam um leve aumento no número de estudantes negros no curso de medicina no Brasil em comparação a períodos anteriores. Em 2019, o percentual chegou a 27,7%, segundo o levantamento, enquanto em 2016, o índice era de 26,1% e, em 2013, de 23,6%.
Em 2010, conforme dados do último Censo realizado pelo IBGE, apenas 17,6% dos médicos brasileiros e 27,3% dos profissionais de saúde eram negros. Também em 2010, de acordo com um estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) realizado a pedido do UOL a partir de dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE), somente 2,66% dos concluintes de medicina eram negros. Em odontologia, eram 3,8% e, em psicologia, 5,8%.
As pesquisas demonstram que ainda que a passos lentos a presença da população negra na área de saúde vem aumentando. Essa demanda por espaço profissional e acessos a oportunidades e direitos ganha ainda mais evidência neste sábado, 20 de novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra, data que marca as reflexões e busca por equidade e relembra a morte de Zumbi dos Palmares, um dos principais líderes negros da história do Brasil e símbolo de resistência.
Atuação na linha de frente da pandemia
Médica infectologista, Suennya Brito, de 31 anos, percebeu o aumento de alunos negros entre a sua graduação, concluída em 2014, e os dias atuais. “Apesar de a gente hoje ainda ter uma esmagadora maioria de pessoas brancas, eu tive a oportunidade de ver esse espaço sendo preenchido cada vez mais por pessoas negras”, falou. No entanto, analisa, a quantidade ainda precisa evoluir para alcançar uma equidade real: “Eu sei que ainda é muito pouco e eu quero deixar de ser exceção”.
Atuando na linha de frente da pandemia desde o ano passado, ela e os colegas da área de saúde fazem parte do grupo por muitos chamado como “heróis da vida real”. Durante os momentos mais críticos, precisou driblar os próprios medos para fazer aquilo que os profissionais da área mais sabem: cuidar do próximo. “O começo foi de extrema insegurança, medo, solidão”, contou.
Mãe de duas crianças e casada com um médico pneumologista, ela e a família redobraram os cuidados, chegando a usar máscara dentro de casa. “Minha filha pedia para eu tirar a máscara para ela poder me ver”, lembrou. Ao longo da graduação e da vida profissional ouviu comentários preconceituosos: “A gente tem um curso extremamente elitizado e boa parte da elite é construída pela branquitude. Muitas vezes ao longo do curso eu ouvi que eu não tinha cara de médica, como se ser médica fosse ter cara”, recordou.
O trabalho influenciou no seu reconhecimento enquanto mulher negra: “É um processo que a gente também vai se descobrindo. O próprio SUS me mostrou de novo onde eu deveria estar”.
A trajetória não deveria ser tão difícil
O médico nutrólogo Dyego Augusto, 31, nasceu no subúrbio do Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife, e passou por dificuldades para se manter no curso. Faz questão de frisar de onde veio, não esquecer a trajetória, mas ressalta que as disparidades sociais ainda enfrentadas pela população negra precisam ser combatidas.
"É muito importante refletir sobre essa nossa história e saber que estamos conquistando espaço na sociedade. Que é um processo lento, que existiram e existem várias barreiras para que a gente consiga ter acesso”, disse.
“A gente está conseguindo aos poucos, é importante entender que devemos lutar por isso, mas que também não é certo ter que ter sempre uma história muito carregada, muito sofrida, tão difícil, de superação. A gente fica feliz em ter chegado mas poderia ter sido tão mais tranquilo, mais simples, se estivéssemos em igualdade de educação, de acesso a conhecimento”, completou.
Antes de se dedicar exclusivamente à nutrologia, Dyego atuou na área clínica, foi plantonista e tornou-se diretor-médico de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), na Zona Sul do Recife, chefiando 52 médicos. Algumas pessoas, conta, procuravam pelo chefe do local e “não imaginavam” que poderia ser ele: “Elas precisam entender que nós também estamos nesses locais”, pontuou.
Na turma da universidade, dos 80 alunos, apenas sete eram negros. “A gente precisa estar em igualdade de condições para poder disputar esse espaço na sociedade. Datas como essa [da Consciência Negra] são importantes para que a gente reflita, saiba que é possível e que os obstáculos podem ser vencidos”.
Durante o primeiro ano da pandemia, atuou na linha de frente de combate à Covid-19, liderando equipe de profissionais de saúde, e precisou assumir difíceis decisões. “Houve casos em que nós tínhamos 10 pacientes e apenas 4 respiradores”, lembrou.
Os cuidados com a saúde mental
A psicóloga Kátia Brandão, de 35 anos, destaca a importância de se cuidar da saúde mental e que a procura por acompanhamento aumentou durante os períodos de quarentena e isolamento.
“O atendimento psicológico durante a pandemia sustentou muitas pessoas, deu espaço de fala, para estar compartilhando e elaborando os momentos de angústia, as ansiedades diante do novo, do desconhecido”, disse.
“Eu cheguei a não ter horário na agenda para atender mais pessoas e encaminhei para outros colegas. Esse acompanhamento foi muito importante, sim, e tem sido ainda, porque as consequências dessa pandemia estão além do agora, estão por vir também”, acrescentou.
Formada há oito anos, ela guarda com carinho o momento em que abriu o seu próprio consultório. Com as adaptações necessárias devido à pandemia, no entanto, passou a atender online, de casa, e segue reforçando as atenções que precisam ser voltadas para a saúde mental da população negra.
“A importância de levar em conta as questões raciais são os estragos que o racismo no país ao qual vivemos nos causou, na autoestima, na forma de ver a vida. Nós estamos num país racista e um racismo muito estrutural e estruturado, que nos atravessa diariamente”, analisa.
Atuação em UTIs
Prestes a completar 10 anos de graduação, a enfermeira Ana Cláudia Moraes, 33, sempre atuou em Unidade de Terapia Intensiva e em departamento de transplante de órgãos. No início da pandemia, conta, trabalhou em três UTIs.
“Foi bem exaustivo em vários sentidos. Desgastante fisicamente e, principalmente, psicologicamente. Lembro-me das feridas no rosto por conta da máscara, da angústia por trabalhar toda paramentada, da privação para urinar e beber água, das ligações antes das intubações, da gratidão daqueles que puderam se despedir dos seus entes por essas ligações, dos olhares de medo a cada nova admissão, dos corpos que saíam em números assustadores, dos relatos de colegas contaminados. Passei meses sem ver ninguém da minha família. Estive perto de muitos desconhecidos nos momentos mais críticos, mas estava longe dos meus”, relembrou.
Como ressalta a profissional, as disparidades existentes dentro da categoria são indiscutíveis: “Isso já é visto desde a graduação, éramos poucos negros”.
Além disso, avalia, houve questionamentos, inclusive, com relação à escolha pela enfermagem: “Já me perguntaram por que não ter feito medicina apesar de ser ‘tão inteligente’. Acho que isso mostra como o preconceito é real e de todos os lados. Eu precisei mostrar que apesar da baixa estatura, da minha cor e da minha categoria, sempre fui suficientemente capaz de cuidar de alguém dentro das minhas competências profissionais a cada vez que me aproximava de algum doente”, refletiu.
“Os desafios sempre serão inúmeros e estamos aqui para mostrar que é possível conseguir”, acrescentou.
Adaptações durante a pandemia
A nutricionista Vanessa Nunes, 31, já se imaginava na área de saúde desde antes de prestar o primeiro vestibular. Há oito anos exercendo a profissão, atuou tanto na área de produção quanto na clínica e precisou se adaptar aos medos e desafios impostos pela pandemia, adotando o atendimento online e seguindo os protocolos definidos pelo Conselho Federal de Nutricionistas.
“O isolamento total da grande maioria, as incertezas das vacinas chegarem, muitas pessoas vindo a óbito com rapidez, parecia mais que caminhávamos numa estrada sem rumo”, disse. Como o distanciamento não permitia o contato presencial para avaliação direta do paciente, foi necessário um trabalho em conjunto para a realização das atividades.
Durante a graduação, recorda, a média era de dois alunos negros para cada grupo de 10. “Eu percebo que algumas pessoas ainda se surpreendem ao ver uma nutricionista negra. É uma visão que precisa ser 'quebrada' e para isso precisamos continuar impondo respeito sempre. Representar minha área e profissão é extremamente honroso. Gosto de me tornar visível em minha atuação para que muitos entendam que suas capacidades de conquistas são, sim, possíveis. Sinto que estou acrescentando algo muito positivo para aqueles que almejam também ter seu espaço na área e profissão. Todos precisam entender que sim, é possível para nós negras e negros ocuparmos nossas colocações com maestria”, comentou.
Pacientes procuram profissionais negros
A cirurgiã-dentista Carolina Lemos, 33 anos, também já cansou de notar a surpresa de pessoas que chegam ao consultório. “Um dia quem sabe elas se acostumam. Esses olhares só me dão mais vontade e garra de cada dia ser uma profissional melhor. Sou muito consciente do meu trabalho, de ser uma mulher negra cirurgiã-dentista nos lugares que ocupo e onde quero chegar”, contou.
Em contrapartida, ela também tem percebido o aumento de pacientes, especilamente negros, que buscam por profissionais de saúde negros. “Esse ano vivi na prática isso. Atendi muitos pacientes que me procuraram porque se identificaram comigo de alguma forma. Pacientes que estavam procurando ser atendido por um ou uma profissional negro ou negra e me encontraram pelas redes sociais ou por indicação de outros pacientes. Pacientes que chegavam e diziam que eu era ou sou até o momento a primeira dentista negra que eles tinham ido para uma consulta. Ouvi muito isso, muito mesmo, esse ano”, disse.
“É aquele negócio, a gente precisa se ver, para saber que é possível sermos o que quisermos e ocuparmos qualquer lugar”, acrescentou.
Atuando no mercado de trabalho desde 2017, ela viu a rotina de trabalho mudar radicalmente durante a pandemia. “Nós tivemos novos e vários protocolos, praticamente de 15 em 15 dias. Tínhamos que entender e colocar em prática o que estava acontecendo no mundo e adequar a realidade da unidade. Nossa biossegurança mudou da noite para o dia. Todos estavam tentando entender a dimensão dessa pandemia, que já deixa sequelas em todos os setores de nossas vidas”, comentou.
A importância da representatividade
A fisioterapeuta Juvanize França, 28, conta que acabou ingressando na profissão por teimosia: “Eu cursava publicidade e propaganda mas não conseguia me ver atuando. Tentei alguns cursos de humanas, mas me encontrei em fisioterapia. Soube que era a minha profissão desde o primeiro contato com paciente, primeiro sorriso, primeira alta clínica. Eu sabia que estava exatamente onde deveria estar”.
Ela se formou em 2018, o curso e a carreira a ajudaram a superar um quadro de depressão. “Meu curso, hoje profissão, era minha maior motivação para cuidar de mim. Eu precisava cuidar de mim para cuidar das pessoas”, contou.
A pandemia trouxe grandes desafios: “Foi um furacão. Tivemos muitos pacientes assustados, não sabíamos se fechávamos ou abríamos a clínica. Trabalhávamos com um aparato tão pesado, jaleco, capote, duas máscaras, faceshield, luvas, que era impossível sentir e tocar os pacientes. Tínhamos medo e tudo era assustador. Contraí o vírus e fiquei bastante debilitada”, recordou.
Na sua turma de graduação, apenas dois alunos negros concluíram o curso e ela já foi muitas vezes a única fisioterapeuta negra do local em que trabalhava. “Já sofri muito preconceito racial velado e outros escancarados. Uma paciente uma vez me disse que ‘quem olha pra você não imagina que você é inteligente assim’, questionando minha competência pela cor da minha pele”, disse.
O orgulho da família e o entendimento da importância da representatividade, avalia, funcionam como vetores para continuar ocupando espaços. “Eu olho para minha sobrinha e a vejo querendo ‘ser doutora’ e vestir um jaleco assim como eu. Eu olho para minha mãe, mulher preta e empregada doméstica erguendo meu diploma na favela. São olhares carinhosos que me tornam cada vez mais realizada”, comenta.
“Hoje tenho cruzado com mais profissionais pretos, mas, ainda não são maioria, não são números expressivos, são poucos; e com histórias bem parecidas com as minhas. Isso me faz pensar que os meus precisam alcançar esses lugares. Representatividade importa demais”, reforçou.