Opinião

A carne, a fome e o crime

A fome pode ser mero registro histórico do passado em muitos países, mas não nosso. Daí a relevância da pergunta: “em um país com tanta miséria, com tantos famintos, furtar para saciar a fome, é crime?”.
Ganha mais importância ainda tal questionamento diante do aumento do preço dos alimentos, de modo especial da carne, que, segundo registros oficiais, já ultrapassou a margem dos 30% neste ano. A carne tornou-se artigo de luxo, tal qual bebidas importadas, roupas de grife e óculos de luxo. Em algumas redes de supermercados, as carnes estão envoltas de lacres, alarmes, entre outros sistemas de proteção especiais, a fim de evitar possíveis furtos.

Triste coincidência, recentemente virou notícia um recurso ofertado pelo Ministério Público do Rio Grande Sul contra decisão do juiz que absolveu sumariamente (no início do processo) duas pessoas denunciadas por furtar e comer alimentos vencidos jogados no lixo de um supermercado. No recurso, o promotor, sem qualquer sentimento de humanidade, insistia na condenação desses “miseráveis” cujo maior crime fora passar fome, “clamando por justiça”.

Há décadas, o jurista espanhol, Jesús María Silva Sánchez já anunciava que viveríamos num futuro breve a “hipertrofia do Direito Penal”: quando tudo se torna crime. O que se concretizou, no entanto, de forma seletiva, uma vez que o punitivismo estatal continua encarcerando os menos favorecidos economicamente, acusados de crimes contra o patrimônio, como roubo e furto.

Nesse sentido, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (dados colhidos até dezembro de 2020 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública) indica que: do total de 697.452 presos no brasil, 285.349, ou seja, 40,91%, são por crimes patrimoniais (o que inclui o furto).

Não é demais relembrar que a preocupação do Estado em reprimir o furto não é nenhuma novidade da atualidade. No Brasil, entre 1603 e 1830, aquele que cometesse furto seria condenado à morte (Livro 5º das Ordenações Filipina, título LX). Hoje, a pena do furto pode variar de 1 até 10 anos de reclusão, a depender das circunstâncias do caso concreto (art. 155, §§ 1º a 7º, CPB).

A intolerância estatal contra crimes patrimoniais, de modo especial o furto, como se vê, pode ser facilmente observada a partir dos registros históricos, da gravidade da pena imposta e dos dados carcerários oficiais mais recentes.

Firme nesses pressupostos, com amparo nos precedentes das Cortes Superiores (STJ e STF), responde-se ao questionamento inicial, não sem lamentar a necessidade de conviver com essa situação, da seguinte forma: para que o furto de comida destinada à alimentação (furto famélico) não seja considerado crime, é preciso, cumulativamente, que o agente não tenha condenações pretéritas, sobretudo por crimes semelhantes, o valor total dos bens subtraídos não ultrapasse 20% do salário mínimo, e que se demonstre a situação de extrema vulnerabilidade do agente. 

Importante ressaltar que, preenchidos tais requisitos, não há um salvo-conduto para praticar furtos. Mas, se é certo que “o direito é uma força viva que está em eterno movimento progressivo de transformação” - como defendia, desde 1872, o jurista alemão Rudolf von Ihering na obra “A luta pelo direito” -  é bem verdade que, antes de se clamar por “justiça”, como fez o MP ao requerer a condenação de pessoas que furtaram lixo para matar a fome, clama-se por condições mínimas de existência, para que não se precise ver o aparato estatal (delegacias, promotorias, vara criminais, tribunais e cortes superiores) empenhado na repressão dos que furtam para matar a fome.


*Advogado criminalista



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