Mudanças climáticas em 2021: agora não há volta
O relatório da ONU destaca que o aquecimento global deve superar o 1,5ºC provavelmente em uma década e que os oceanos estão subindo mais depressa do que o previsto e continuarão assim por séculos
Em um quarto de século de conferências sobre o clima da ONU, com a tarefa de salvar a humanidade de si mesma, uma foi considerada um fracasso caótico (a de Copenhague em 2009), outra, um sucesso retumbante (a de Paris em 2015), e as demais ficaram em um ponto intermediário.
A COP26 deste ano inspirou reações dos dois tipos.
À frente de uma marcha de 100 mil manifestantes pelas ruas de Glasgow, onde a COP26 foi celebrada, a ativista sueca Greta Thunberg desqualificou a reunião de cúpula de duas semanas como um "festival de maquiagem verde", embora especialistas dedicados na arena das negociações tenham comemorado os avanços sólidos - inclusive históricos - feitos durante a conferência para conter a ameaça existencial do aquecimento global.
No entanto, com maior frequência, os observadores oscilaram entre aprovação e críticas, esperança e desespero.
"O Acordo Climático de Glasgow é mais do que nós esperávamos, mas menos do que desejávamos", disse Dann Mitchel, diretor de riscos climáticos do Met Office, o serviço meteorológico britânico.
Avaliar a eficiência das medidas anunciadas na COP26 depende amplamente dos parâmetros usados para medi-las.
Em comparação com o que veio antes, o apelo inédito de 196 países para eliminar a energia derivada do carvão ou a promessa de dobrar a ajuda financeira a cada ano - para aproximadamente US$ 40 bilhões - de forma que os países pobres possam se preparar para os impactos climáticos, foram avanços gigantescos.
Também o foi a cláusula obrigando os países a considerar metas mais ambiciosas para reduzir as emissões de carbono a cada ano ao invés de uma vez a cada cinco anos.
Todos estes avanços foram conquistados arduamente em uma COP26 reduzida em significância quando confrontada com os dados científicos.
Rota de saída de Glasgow
Em 2021, uma sequência contínua de inundações, ondas de calor e incêndios florestais mortais nos quatro continentes, combinadas com projeções cada vez mais detalhadas, não deixaram dúvida que superar o limite de um aquecimento de 1,5ºC previsto no Acordo de Paris empurraria a Terra para a zona vermelha.
"Como um otimista incorrigível, vejo o resultado de Glasgow como um copo meio cheio ao invés de meio vazio", disse Alden Meyer, analista sênior de clima e energia do 'think tank' E3G.
"Mas a atmosfera responde às emissões - e não a decisões da COP - e há muito trabalho a fazer para transformar a retórica incisiva em realidade", acrescentou.
O ano de 2021 também viu a Parte 1 da primeira síntese abrangente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) sobre ciências climáticas em sete anos.
O relatório destaca que o aquecimento global deve superar o 1,5ºC provavelmente em uma década e que os oceanos estão subindo mais depressa do que o previsto e continuarão assim por séculos.
E as florestas, o solo e os oceanos - que absorvem mais da metade das emissões de carbono da humanidade - dão sinais de saturação.
Na sequência, está a ameaça dos "pontos de inflexão", que podem ver o permafrost (solo congelado) liberar quantidades maciças de CO2 e metano, a bacia amazônica se transformar em savana, e as calotas de gelo perderem massa suficiente para submergir cidades e deltas, onde vivem centenas de milhões de pessoas.
"Não se enganem, ainda estamos na estrada para o inferno", disse Dave Reay, diretor do Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade de Edimburgo, na Escócia.
"Mas Glasgow pelo menos criou uma rota de saída", acrescentou.
Os quatro maiores emissores
A Parte 2 do relatório do IPCC sobre os impactos climáticos, ao qual a AFP teve acesso exclusivo antes de sua publicação, em fevereiro de 2022, revela outro abismo gigantesco entre os pequenos passos dados na COP26 e o que é preciso no longo prazo.
Ajudar países vulneráveis a lidar com o efeito multiplicador do aquecimento global sobre o clima poderia, em breve, demandar trilhões de dólares por ano e não as dezenas de bilhões colocados sobre a mesa na COP26, deixa claro uma versão preliminar do documento.
"Os custos de adaptação são significativamente mais elevados do que o estimado anteriormente, resultando em um crescente 'abismo de financiamento da adaptação'", destacou o sumário executivo do informe de 4.000 páginas.
O fracasso dos países ricos em liberar US$ 100 bilhões ao ano até 2020 para ajudar os países pobres torna difícil imaginar de onde viriam estes trilhões.
Glasgow marcou a tansição entre o detalhamento das regras para o Acordo de Paris e a implementação de suas cláusulas. Mas ao contrário da sequência de outras grandes COPs, a crise climática continuará central e prioritária.
Como a história vai se desenvolver vai depender em grande parte dos quatro maiores emissores do planeta, responsáveis conjuntamente por 60% das emissões globais de carbono.
Os Estados Unidos e a União Europeia se comprometeram com a neutralidade de carbono até 2050 e recentemente assumiram metas de redução de emissões mais ambiciosas para 2030, mas se recusaram a estabelecer um fundo pedido por mais de 130 países em desenvolvimento para ajudar a pagar pelos danos climáticos já causados.
Todos os setores, todos os países
A China e a Índia - que responderam por 38% das emissões globais em 2021 - resistiram à pressão de renunciar aos combustíveis fósseis e a China se recusou firmemente a fazer o que os cientistas dizem ser factível e necessário para o aquecimento permanecer abaixo dos 2ºC: limitar o pico de suas emissões muito antes de 2030.
Se a política climática permaneceu travada, o capital mundial já está se encaminhando para o que alguns chamam de a maior transformação econômica maciça da história humana.
Em Glasgow, o ex-governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, se vangloriou de que cerca de 500 bancos, seguradoras e gestores de ativos que respondem por US$ 130 trilhões já estavam prontos para financiar a ação climática.
"Se nós apenas tivéssemos que transformar um setor ou eliminar os combustíveis fósseis de um país, já teríamos feito isso há muito tempo", comentou Christiana Figueres, que presidiu a convenção climática das Nações Unidas quando o Acordo de Paris foi alcançado.
"Mas todos os setores da economia global precisam ser descabonizados e todos os países precisam se voltar para as energias limpas", acrescentou.
Para onde parte deste dinheiro deve ir - e quem deve ficar de lado - também entrou em foco, com grandes acordos de investimentos anunciados para a África do Sul e outros em fase de preparação para economias emergentes, como Indonésia e Vietnã.
Mas há poucos incentivos para o capital privado ajudar os países mais pobres e vulneráveis a lidar com destruições provocadas por eventos climáticos e erguer suas defesas.
"Não podemos apenas esperar que incentivos do mercado encontrem seu caminho, precisamos estabelecer metas baseadas na ciência que se tornem leis climáticas", disse Johan Rockstrom, diretor do Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático.