O parnasianismo e a Covid-19
Faz mais de quarenta anos que o poeta paraibano Augusto dos Anjos não era alvo de minhas leituras. Foi quando terminei a matéria literatura brasileira no científico.
Enfadonho, sua obra é carregada de simbolismo e escorada em temas sombrios, com a morte assumindo destaque ao lado dos vermes, do escarro, do sêmen.
Lúgubre, como na obra citada, o combate à Covid-19 no Brasil parece um verso parnasiano de Augusto dos Anjos, o “poeta da morte”.
Na semana passada, a mais recente estrofe foi declamada durante uma coletiva de imprensa.
A frase de efeito “perder a vida, a perder a liberdade” foi proferida por um conterrâneo de Dos Anjos, fugindo do tema da entrevista que abordava ações a serem desenvolvidas no enfrentamento de nova variante da doença.
Sem nexo causal - posto que há dúvida quanto ao sujeito dar a vida por um pedaço de papel timbrado -, defendia a negação do governo federal em acompanhar a orientação da Anvisa, que prega a exigência de um passaporte sanitário aos viajantes que acorram ao país.
A variante Ômicron se espalha a taxas exponenciais de transmissão. A proposta de uma quarentena de cinco dias é questionável. Qual a sua base científica e como será fiscalizada?
Percebia-se o desconforto dos integrantes da mesa na coletiva. O emissor da mensagem segurava no braço da autoridade escalada como tropa de reforço como se implorasse por socorro.
Os demais estavam presentes apenas em corpo, a alma permanecia no gabinete, imaginando um discurso para explicar as declarações oficiosas.
Sejamos justos em reconhecer que o mundo anda batendo cabeça sobre o Sars-Cov-2. Mas desconsiderar normas cientificas, arguindo um princípio difuso da liberdade individual, carece de substância filosófica.
A minha liberdade termina ou começa onde a do outro começa ou termina. Portanto, tenho o direito de não ser infectado por terceiros que se recusem a vacinar-se, transformando-se em potenciais vetores.
Niall Ferguson, na obra CATÁSTROFE (Crítica, 2021) afirma que “seria fácil atribuir esse fracasso (o combate à pandemia) quase inteiramente à fanfarronice populista”.
Contudo, liberais, como Sofhie Wilmès, primeira-ministra da Bélgica, se saíram tão mal quanto governos nacionalistas com viés de extrema-direita e tendentes ao negacionismo.
Então, como conduzir a batalha?
Henry Kissinger capturou as assimetrias da tomada de decisão, diante de uma incerteza, quando analisava a estratégia nuclear nos anos 1970.
Referia: se os decisores atuarem com leniência, só o tempo poderá revelar que estavam errados e, estando, pagarem alto preço político. Se decidirem por agir prontamente, não saberão se o esforço foi desnecessário.
Na Terra Brasilis, a postura antissistema de parte das lideranças (sou do contra, não me pergunte contra o quê) se confrontou com forças saudáveis.
Assumiu-se, âmbito sociedade organizada, o senso comum de que vacina é ferramenta de saúde pública eficaz.
Conseguiu-se derrotar o negacionismo. Nos vacinamos, mais de 65% da população, com duas doses. A gestão governamental, optando pela leniência, foi intimada a seguir a massa.
De volta ao parnasianismo. Trazer o mote liberdade, quando a morte foi tema asfixiante e recorrente na pandemia, não é literatura, é hipocrisia política-eleitoral.
Quanto mais próxima as eleições, mais estultices serão oferecidas nos discursos aos nichos ideológicos.
A política, quando se resume a altercações figadais, é fagulha incendiária que provoca catástrofes sociais. Poemas como o recitado na semana passada, em nada ajudam a debelá-las.
Fiquemos prontos para empregar os meios disponíveis e abafar o fogo da insensatez que se alimenta na descompostura de algumas das lideranças nacionais.
O voto é a ferramenta mais democráticas para apagar as chamas da irracionalidade. E só depende de nós!
Paz e bem!
*General de Divisão da Reserva
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