'Paul em casa': HQ de Michel Rabagliati apresenta angústias de um solitário avesso à tecnologia
Premiado autor canadense usa humor agridoce e arte de cartum para contar história autoficcional
Paul está em casa. E sozinho. Ou melhor, quase. O cãozinho Biscoito ainda lhe faz companhia. Mas Paul, agora divorciado, se sente muito solitário, principalmente porque sua filha também partiu, e a residência em que a família morava agora é grande demais só para ele. Daí estar mal cuidada, com a piscina suja e a grama tão alta. Abandonada assim como o próprio Paul, um homem de cinquenta e poucos anos avesso à tecnologia e com problemas para dormir, além de ter uma mãe que mora sozinha e volta e meia precisa de sua ajuda.
Este é o enredo de “Paul em casa” (Comix Zone), mais novo quadrinho do canadense Michel Rabagliati, que costuma fazer de seu personagem uma espécie de alter ego de si mesmo. Paul já protagonizou vários momentos da vida do autor em livros que renderam a Rabagliati neste ano o prêmio de Melhor Série no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême pelo conjunto da obra. E não foi o primeiro por lá. Há 11 anos, ele ganhou o prestigiado prêmio do público pelo álbum “A canção de Roland”, publicado no Brasil pela mesma Comix Zone.
"É sempre interessante e encorajador ganhar prêmios, mas, por incrível que pareça, não me traz tanta alegria", revela Rabagliati por e-mail. "No dia seguinte, volto ao trabalho e já esqueci tudo isso. Gosto de ser lido, que é o que mais importa para mim no final do dia".
Assim como Rabagliati, Paul trabalhou por muitos anos como designer gráfico e, em determinado momento da vida, decidiu se dedicar exclusivamente à ilustração editorial. Ambos são profissionais autônomos, que costumam trabalhar de forma isolada. Mas a pandemia evidentemente atingiu mais o autor da HQ:
"Para ser franco, entrei em pânico no início. Já vivia a solidão e tive muita dificuldade em lidar com a ideia de me trancar ainda mais! Especialmente durante o inverno em Quebec, onde fica frio e escuro a partir das 16h. Tive que me acostumar como todo mundo, mas não foi fácil!"
A autoficção que o quadrinista canadense produz em “Paul em casa” é melancólica, porém com muito bom humor. Afinal como não rir com a rabugice do personagem com relação à nova tipologia das placas de trânsito? “Por que tudo sempre tem que mudar?”, pergunta-se Paul ao volante, angustiado. Ou sua aversão aos aparelhos de celular, em busca das verdadeiras relações humanas, como antigamente, antes das redes sociais? Evidentemente Paul não se sente confortável nos dias atuais. E o mesmo deve acontecer com Rabagliati, que se expõe bastante neste novo livro, ainda que insira um pouco de ficção. Ele diz que pareceu natural ir mais longe na psicologia de seu personagem.
"Nos meus dois livros anteriores eu consegui, ao contar duas histórias de minha juventude, evitar me mostrar hoje, aos 50 anos", explica o quadrinista canadense. "Em 'Paul em casa', as máscaras caíram e eu pinto um quadro bastante preciso dos últimos dez anos de minha vida. Honestamente, eu acreditava que isso me libertaria e me ajudaria a olhar para o futuro, mas não foi bem o caso, ainda estou muito deprimido. Acho que acabei herdando a genética de minha mãe, que era cronicamente deprimida".
Apesar da solidão de Paul, o humor agridoce e a arte cartunesca de Rabagliati tornam a leitura de “Paul em casa” agradável. O amor do personagem por sua mãe e filha, com choques de gerações de todos os lados, é um trunfo. E uma crônica bem realista de nossos dias, em que interagimos mais pelo Facebook. A pandemia só acentuou isso. O final poético do livro, porém, traz esperança.
Rabagliati já produziu nove aventuras com seu alter ego como protagonista - sete delas ainda inéditas no Brasil - e avisa que seu próximo livro será um pouco diferente, uma graphic novel no verdadeiro sentido do termo.
"Estou trabalhando em um pequeno romance ilustrado", revela o autor. "O formato é um pouco menor do que os livros de minha série, e a história se passa numa ilha do Quebec, onde às vezes passo uma semana com minha filha, no verão. É a história de uma viagem. No momento, estou na terceira parte da história".