Adolescentes com deficiência intelectual mostram que crescer requer adaptação da sociedade
Cerca de 813 mil brasileiros têm alguma disfunção cognitiva. Reportagem traz histórias e análises sobre a adolescência dessas pessoas, processo permeado de descobertas.
O mundo é diverso e comporta todos os tipos de gente. São quase 8 bilhões de humanos habitantes da planeta Terra; cada um deles, incluindo você e este repórter que escreve, com necessidades específicas, que precisam encontrar na vida em sociedade um apoio para serem superadas ou contornadas. O mundo é diverso, vale repetir, e, portanto, deve estar adaptado à realidade de cada ser que nele vive.
E o mundo comporta todos os tipos de gente. Tem gente de pele preta, parda, branca. Tem gente de cabelo liso, crespo, cacheado, castanho, louro, grisalho. Tem gente que chora com beijo de novela, assim como tem gente que não chora com nada. E tem gente que não fala ou diz poucas palavras, anda e gesticula de um jeito, age e pensa de uma maneira muito peculiar. Mas nem por isso deixa de ser e de sentir. Tem gostos, amigos, família, se diverte, se entristece, ama. Nasce e cresce.
Boa parte das preferências pessoais e do que nos compõe como seres humanos se descobre na adolescência. A fase de transição para a vida adulta é permeada de dúvidas e debates sobre o corpo, o futuro, as relações e a sexualidade, proporcionando muitas descobertas em pouco tempo. Assim é com todos os jovens, e aqueles com deficiência intelectual não estão fora desse processo. Muito pelo contrário.
Crescer nas diferenças
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, divulgada este ano pelo Ministério da Saúde e realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que, dos mais de 17,3 milhões de pessoas com deficiência (PCDs) no Brasil, 3,3% estão na faixa etária dos 10 aos 17 anos, e 4,7% têm alguma disfunção cognitiva. Parece pouco, mas o percentual representa mais de 570 mil adolescentes no primeiro caso e cerca de 813 mil pessoas - independentemente da idade - no segundo.
São pessoas com síndromes como autismo, paralisia cerebral ou de Down, que podem comprometer a fala, a autonomia e parte das funções motoras. Mas, mesmo com as particularidades trazidas pela condição do nascimento, esses jovens - e os pais deles - convivem com as mesmas questões vivenciadas pelos outros adolescentes.
(Re)conhecendo o corpo
Uma delas envolve o conhecimento do próprio corpo e, embora envolta de tabus, é tão comum e natural quanto o ato de respirar. Depois que o filho cruzou a linha dos 11 anos, a secretária administrativa Paula Laranjeira, 46, percebeu que Matias, hoje com 12, “se tocava”.
O estudante nasceu com três deformidades: lisencefalia, em que o cérebro, ou parte dele, é “liso”, sem os sulcos que dividem o córtex cerebral; paquigiria, que corresponde à má-formação dos poucos sulcos existentes; e agenesia do corpo caloso, que consiste na deformação de uma cartilagem do órgão principal do sistema nervoso.
As três condições provocaram uma paralisia cerebral com déficit intelectual. Por isso, o jovem fala poucas palavras, como o nome da mãe, já sofreu crises convulsivas e apresenta déficit em algumas funções motoras.
“O cognitivo não acompanha o corpo, e Matias tem uma consciência. Demorei um pouco para perceber que ele tinha começado a se mastubar”, comenta Paula. “Ele se mexe muito quando dorme, e eu ficava pensando: ‘É ou não é?’. Até que, acho que na segunda ou terceira vez, tive certeza”.
Uma das primeiras preocupações dela era dissociar esse toque a fantasia ou desejo sexual. “Tinha medo de que ele sofresse uma convulsão, mas o neuropediatra disse que eu não me preocupasse porque era uma forma de aliviar as tensões”, lembra. Outro desafio era evitar que ele fizesse na frente de outras pessoas. “Hoje eu converso com ele, que entende e já sabe que tem o lugar e a ocasião para isso, sozinho”, diz.
Conversa de gente grande
O “olhar diferente” para as pessoas com deficiência, especialmente aquelas com algum comprometimento cognitivo, faz, muitas vezes, elas serem tratadas como crianças, mesmo que já tenham passado dessa fase há muito tempo.
Referir-se a esses adolescentes no diminutivo e com expressão de pena (“Ó, o/a bichinho/a!”, “Meu bebezão!”) e evitar um diálogo franco com eles são faces do capacitismo, forma de discriminação contra as PCDs que sempre considera essa população como “incapaz” de desenvolver habilidades, de realizar tarefas ou de compreender situações e contextos.
Como explica a professora do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Keise Nóbrega, é preciso olhar para a pessoa por trás da deficiência.
“Há uma influência muito grande do meio social na promoção dos estímulos para que eles realizem as atividades de maneira mais autônoma. Isso vem desde a infância, mas, quando chega a adolescência, fica mais evidente, porque às vezes há uma superproteção e as capacidades do adolescente são subestimadas”, afirma. “Às vezes só se precisa de um treino maior ou de uma adaptação [dos objetos da casa ou do material pedagógico, por exemplo], mas eles precisam experimentar as situações e, sem isso, pode ser mais difícil aprender e se apropriar do seu corpo”.
Essa infantilização também cria tabus que tornam o jovem com deficiência menos consciente sobre o próprio corpo e mais vulnerável a sofrer violência sexual.
“Há um risco alto de adolescentes vítimas de abusos porque eles nem compreendem o que está se passando. Por isso que é importante o trabalho de educação sexual para as pessoas com deficiência”, diz a professora, que, em pesquisa recente, desenvolveu um material educativo, intitulado “Abuso não vai rolar: aprendendo a se proteger”, com orientações para a prevenção de assédio contra PCDs, tendo como foco mulheres.
Informação é poder
Um ponto crucial para os pais lidarem com as questões ligadas à adolescência é saber orientar, tendo uma conversa franca e aberta sobre os estudos, o comportamento e as mudanças provocadas pela puberdade.
Mãe de Leila, 14, a dona de casa Maria Antônia Araújo, 58, se dedica a cuidar da filha, que tem síndrome de Down e faz as terapias no Centro de Reabilitação da Fundação Altino Ventura (FAV), no bairro da Iputinga, Zona Oeste do Recife. Lá, ela participa de sessões com profissionais da psicologia e da psicopedagogia e já passou por atendimentos de fisioterapia e terapia ocupacional.
“Amanhã ela pode não ter mais a mim. Como é que vai ficar?”, questiona-se Maria Antônia, que busca estimular a filha para ter o máximo de autonomia possível. “Já ensinei a tomar banho, ela sabe se higienizar só”, diz. Na passagem da infância para a adolescência, um dos temas abordados foi a menstruação, que chegou pela primeira vez aos 12 anos.
“Nós fomos à terapia, ela foi ao banheiro e (quando voltou) disse: ‘Eita, mãeinha, tá cheio de nojeira!’. Até aí, eu não tinha conversado nada com ela, até porque sou meio retraída. Arranjei uma roupa para ela, dei banho e expliquei que aquilo ia acontecer todo mês. Ela mesma se lava e eu ajudo só na orientação e para colocar o absorvente. Quando acontece, eu peço só para ela não contar a todo mundo, principalmente a menino, porque o povo vê maldade”, observa.
Evolução e estímulos
Coordenadora do Setor Intelectual do Centro de Reabilitação da Fundação Altino Ventura, a fonoaudióloga Mila Veras recorda a necessidade de trabalhar toda a rede de apoio para garantir a sociabilidade dos jovens.
“As crianças também têm dificuldade de fazer amigos na escola e, como há a deficiência, podem sofrer bullying, então precisamos fazê-las entender que elas devem ser incluídas, os pais têm que entender os direitos delas, o apoio dos professores e assistentes na sala de aula. Quando o pequenininho entra, vai fazer terapia ocupacional, psicomotricidade. Mas, na fase da adolescência, a psicologia vem muito forte”, diz.
No caso de quando a condição vem do nascimento, os estímulos para o aprendizado de habilidades devem ser dados o mais cedo possível. De acordo com a neuropediatra Milena Cavalcanti, que também atua na instituição, a primeira fase da infância, até os 2 anos, é o período em que o cérebro apresenta a melhor plasticidade neuronal, ou seja, a capacidade de compensar as funções comprometidas, estimulando outras áreas do órgão. Mas isso não significa que os adolescentes não podem evoluir.
“Precisamos estimular precocemente para que o cérebro da criança encontre outras vias para cumprir determinada função. Isso é mais presente nos menores, mas encontra também em adultos. O estímulo não deve parar. E o que a gente espera dos adolescentes? Autonomia e qualidade de vida. E é importante que esse jovem se sinta útil, participe das atividades de casa e tenha sonhos”, observa.
A coordenadora do setor, Mila Veras, corrobora. “O adolescente não pode ficar para sempre na reabilitação, tem só um vínculo [com a clínica] para manutenção. Mas ele deve ser preparado para a vida e, em algum momento, vai ter alta. Precisamos é de programas que façam a ponte para atuar no esporte, no lazer, na cultura, no mercado de trabalho”, argumenta.