Coach que promete 'pior ano da vida' leva seguidores a montanha e bombeiros precisam fazer resgate
Recomendação é de que o Pico dos Marins seja escalado apenas em períodos secos, entre abril e agosto, e com presença de guia, itens especiais e condicionamento físico adequado
Dois mil e vinte e dois mal começou, mas, em menos de uma semana, o coach Pablo Marçal já entregou pelo menos parte do que prometeu a alguns de seus clientes, num curso vendido por ele sob o nome de "O pior ano da sua vida". Isso porque, na última quarta-feira (5), o influenciador digital, que tem mais de 2 milhões de seguidores, decidiu pôr a prova 60 pessoas — número dito por ele próprio —, que o seguiram rumo ao cume do Pico dos Marins, em Piquete, no interior de São Paulo — o quarto maior do estado com seus 2.400 metros de altura, perigoso e com histórico de acidentes fatais, como o de um francês em 2018.
Fora da época recomendada, sem qualquer preparo e também sem equipamentos necessários para a trilha, a aventura tida como imprudente quase se transformou em tragédia, e o Corpo de Bombeiros precisou intervir, numa operação que durou 9 horas para resgatar 32 pessoas.
"Ele foi totalmente irresponsável. Subir com um grupo de pessoas despreparadas e sem equipamento é colocá-las sob risco de morte. Essa foi a pior ação que a gente viu no Pico dos Marins", afirmou Paulo Roberto Reis, capitão dos bombeiros e chefe da operação de resgate, em declaração dada ao portal g1.
O tempo de escalada, entre ida e volta, varia entre sete a oito horas e exige bom condicionamento físico. Além disso, o recomendado é que ela seja feita em períodos secos, entre abril e agosto, e é necessária a presença de um guia, equipamentos de comunicação, de aquecimento e alimentação adequada. Os bombeiros afirmam que são frequentes os resgates feitos a turistas no local.
A reportagem não conseguiu contato com Marçal. Numa live, no entanto, ele se defendeu afirmando que "não obrigou ninguém a subir" a montanha. Segundo os bombeiros, o resgate foi acionado por volta das 2h30 da manhã, depois que o grupo teve barracas arrastadas pela ventania e as pessoas ficaram molhadas, sob risco de hipotermia – no pico à noite a temperatura chega perto de 0°C. Além disso, com a chuva, os militares relataram que a pedra estava escorregadia e a neblina dificultava a visibilidade. Após o resgate, Marçal alegou ainda, em uma rede social, que a intervenção dos bombeiros foi feita por precaução, o que também foi rechaçado pela corporação.
"O Corpo de Bombeiros não faz trabalho de precaução, somos um órgão público que atende emergência", acrescentou Reis ao g1. "Recebemos um chamado para mais de 30 pessoas perdidas, sem equipamentos, debaixo de chuva e pedindo apoio de resgate. Evitamos uma tragédia".
Corroborando o que disse o bombeiro, e mostrando ter consciência do risco que corria, o coach também utilizou o termo "irresponsável" em sua rede social ao publicar uma foto na chegada ao topo da montanha: "Só os irresponsáveis chegam no topo", escreveu, em tom de ironia.
Sem o conhecimento necessário, Marçal liderou a escalada prometendo “códigos que destravassem a mente” — de acordo com filosofia que vende na internet — ao fim da aventura. Em sua página no Instagram, fez imagens da expedição e comentou sobre as dificuldades enfrentadas, mas exaltando-as e com naturalidade, sem falar na operação feita pelos bombeiros.
"A situação climática estava terrível, e foi o pior dia da nossa vida: barraca entrando água, risco de hipotermia. E eu posso te falar uma coisa: a gente se reunia o tempo todo para tomar decisões. Chegamos a cogitar a possibilidade de descer à noite, mas a gente falou "vamos ficar quietos aqui, porque aqui ainda temos abrigo". Na hora de descer ficamos mais 4 horas parados, com ventos de mais de 100 quilômetros por hora", disse.
Numa outra gravação, ele ainda provoca os demais que não aguentaram as condições adversas e, portanto, não conseguiram chegar até o fim da expedição. Ele se refere às pessoas como sendo pertencentes a espécies de tribos de seu programa.
"Vinte e quatro horas de agonia aqui, mas a gente descobriu quem é de cada tribo. Ó os caras da minha tribo aqui, ó", falou, apontando para os demais que o acompanhavam. "Da tribo dos que não reclamam, dos que prosperam, dos que não param por nada. Como é bom andar com gente dessa tribo".
O curso com o curioso nome de "O pior ano da sua vida" vendido pelo coach na internet propõe que os seguidores "sigam na contramão do mundo", e, por um valor de quase R$ 3 mil, promete ao "aluno" uma vida melhor, crescimento espiritual e até a instrução de novos idiomas, sem dar muitos detalhes do conteúdo ofertado. Ele, que se define como "uma autoridade na internet" utiliza ainda termos militares como "general" e"quartel-general", além de citar por diversas vezes, também, a Bíblia como instrumento. De acordo com o site oficial, são cerca de 50 mil alunos inscritos.
Chama atenção ainda um segmento do curso que é voltado ao público infantil, chamado de "Pior Ano Kids".
"Nada mais é que uma espécie de canal infantil com o objetivo de formar Generais desde a base. Invisto na nossa geração, mas acredito na próxima. Quero que seu filho(a), cresça alguém com princípios bíblicos e se torne um adulto altamente preparado para a vida! Por isso, irei investir pesado nesse conteúdo", descreve Marçal.