"Mordaça" traz à tona assunto (ainda) necessário: a censura na arte
Livro, escrito por João Pimentel e Zé McGill, é contado a partir de depoimentos de artistas da música e de outros personagens, essenciais à preservação da história da música nacional
Sempre será bem-vindo, e sobretudo necessário, quaisquer escritos que deságuam no embate ditadura versus arte. Apesar de abominável, não há excessos em reiterar o assunto em tempos atuais de um Brasil que adota falas (e práticas) que beiram a repressão e a censura.
Não é pregresso, portanto, falar sobre ditadura, ao contrário, é narrativa que precisa ser consumida, leia-se, entendida o suficiente para esgotar possibilidades de retorno.
E quando didaticamente histórias sobre perseguição, tortura e silenciamentos são contadas pelas próprias vítimas, como no livro “Mordaça – História de Música e Censura em Tempos Autoritários” (Sonora Editora, 2021, a partir de R$ 56,45), escrito por João Pimentel e Zé McGill, a empatia pode ganhar lugar cativo.
A crueldade do AI 5
Em 29 capítulos, os tempos cruéis do cerceamento da música no País, a partir do Ato Institucional nº 5 e 1968, são expostos com depoimentos de personagens que resistiram, tal qual o fazem no tempo presente. Nomes como Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Odair José, Ney Matogrosso, Elis Regina, Gilberto Gil e Chico Buarque são alguns dos que abrem aspas sobre os anos de chumbo.
Os heróis essenciais
As primeiras páginas de “Mordaça”, no entanto, se propõem a trazer como também protagonistas “heróis” essenciais ao processo de liberação de letras de música. O advogado João Carlos Muller Chaves (1940-2021) está entre eles como nome de peso dos direitos autorais e da história fonográfica brasileira.
Foi graças a Muller que “hinos” assinados e entoados por Gil, Elis Regina, Nara Leão e Caetano Veloso seguem preservados, já que coube a ele, com o AI-5, as tentativas de liberação de letras vetadas por censores da ditadura. Entre os destaques, o cancioneiro de Chico Buarque, um dos mais perseguidos e em especial com a clássica “Apesar de Você” (1970).
“(...) A mulher censora liberou achando que aquilo era um negócio romântico”, conta Chico no livro. Lançada em compacto simples, a canção atingiu a marca de 100 mil cópias vendidas e se tornou a mais tocada nas rádios brasileiras do período.
Os versos, reproduzidos em coro, passaram a incomodar e o “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” foi censurada, mas àquela altura já estava atravessada nos ouvidos de milhares de pessoas.
Vandré: ele apareceu demais
Tal qual Chico, o paraibano Geraldo Vandré também deu as caras para a ditadura e “apareceu demais” com a sua “Pra não Dizer que não Falei das Flores” – que se sagrou vice-campeã do Festival Internacional da Canção (1968).
Findado o festival, formou o grupo Quarteto Livre com Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Nelson Ângelo e Franklin da Flauta, e pairou por entre cidades do País com show homônimo à canção, tida como o hino da ditadura.
“Todo mundo queria ver o Vandré por causa da música”, narra no livro o petrolinense Geraldo Azevedo, que se tornaria amigo do xará, dividindo com ele inspiração dos versos iniciais da “Canção da Despedida”.
“Já vou embora, mas sei que vou voltar. Amor, não chora, que eu volto é pra ficar” foi a primeira e derradeira parceria selada por eles, censurada é claro, e só gravada em 1983 por Elba Ramalho.
“A história nos mostra que o maior inimigo de um governo autoritário é o pensamento. Por isso os artistas, os verdadeiros artistas, são tão perseguidos, conforme vimos no livro”, ressaltou Zé McGill em fala para apresentação da obra que pôs clarões em cada um dos depoimentos tomados entre 2018 e 2021, com recortes fundamentais dos anos de chumbo para a música brasileira.
“Mordaça” é das obras que não hesitam em compartilhar verdades com contundência, inclusive quando reproduz pareceres de censores “justificando” o motivo de vetos a letras como “(...) A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu?”, mas quiçá “Apesar de você amanhã há de ser outro dia”. Laraiá laraiá lá.