Coronavírus

Consulta sobre vacinação infantil e votação na 'Time' expõem tática bolsonarista

A tática está por trás também da campanha para que o presidente fosse escolhido "personalidade do ano" na revista americana "Time"

Primeira criança no Brasil a ser vacinada contra Covid-19 - Nelson Almeida/AFP

A consulta pública sobre vacinação infantil, aberta pelo Ministério da Saúde no fim do ano passado, expôs uma estratégia recorrente do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus apoiadores: o uso de espaços de participação popular com votações online para demonstrar força e adesão na sociedade. A tática está por trás também da campanha para que o presidente fosse escolhido “personalidade do ano” na revista americana “Time”.

Pesquisadores do tema ouvidos pelo GLOBO avaliam que, no caso da consulta pública, o objetivo era, além de adiar a imunização infantil, legitimar a decisão do governo — Bolsonaro diz ter ele próprio participado da votação. O resultado, porém, não foi totalmente favorável à posição do presidente. A maioria das mais de 99,3 mil pessoas e entidades participantes se posicionou contra à exigência de prescrição médica para imunização de crianças contra a  Covid-19, defendida por Bolsonaro, enquanto mais da metade deles também votou contra a compulsoriedade da vacinação infantil, outra bandeira do presidente.

Apesar do placar, a base bolsonarista se mobilizou em torno do tema. Um levantamento do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identificou entre 23 de dezembro e 3 de janeiro a circulação de ao menos 155 mensagens com links da consulta pública no site Participa + Brasil, lançado em fevereiro e que abrigou a enquete sobre o tema, em grupos bolsonaristas monitorados no WhatsApp e Telegram. As postagens foram compartilhadas em 65 grupos distintos.
 

"Há lógica de torcida, em que ganha a que for a mais organizada. A estratégia parte da premissa de que a base organizada em rede vai atuar para forçar um resultado favorável. O governo usou a enquete para parecer democrático, mas no fundo o objetivo era usá-la como ferramenta de propaganda", analisa a coordenadora do NetLab e professora da UFRJ, Rose Marie Santini.

Foi o caso da enquete da “Time” para escolher a “personalidade do ano” por voto popular, em novembro. A campanha pela eleição de Bolsonaro ocorreu no Telegram e WhatsApp com orientações de como votar no presidente e impulsionar seu nome em relação aos demais concorrentes.

O uso de consultas públicas no Participa + Brasil não é comum para temas centrais da gestão de Bolsonaro. Até o momento foram realizadas 189, além de 44 enquetes com pedidos de posicionamento da população. Ao todo, 14 enquetes dizem respeito a planos de abertura de bases de dados. Chamam a atenção ainda temas periféricos das pastas, como a votação do design do sistema de placa para veículos, promovida pelo Ministério da Infraestrutura no ano passado.

A postura do governo na consulta pública sobre vacinação infantil também vai na contramão do esvaziamento que promoveu na participação da sociedade na definição de políticas públicas, que vinha crescendo em governos anteriores e se consolidando no país desde a Constituição de 1988, lembra o diretor para a América Latina da Open Society Foundations e ex-secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay. Um exemplo são os conselhos de políticas públicas, com participação da sociedade civil.

"Participação social não é enquete. Na enquete, não se traz argumentos novos, não há novos atores participando, não há convencimento. Não torna o país mais democrático".

Um levantamento de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), antecipado pelo “Jornal Nacional” em outubro, aponta que 75% dos comitês e conselhos nacionais estão esvaziados ou foram extintos. Um decreto de Bolsonaro, de 2019, permitiu eliminar e alterar regras dos conselhos. A medida teve alcance reduzido por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que impediu o fim daqueles criados por lei, mas outras estratégias foram adotadas, como a alteração da composição dos colegiados, do número de membros e até de nome, como o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, que perdeu o termo LGBT.

Uma das autoras do estudo, a pesquisadora do Cebrap e da UFRJ Carla Bezerra destaca que há um esvaziamento direcionado e lembra que os conselhos têm papel na fiscalização e formulação de políticas.

"O interesse é esvaziar espaços de participação que poderiam oferecer resistência a políticas (do governo). Eles até continuam a existir formalmente, mas deixam de poder cumprir suas funções".

Também autor da análise, o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Cebrap Adrian Gurza Lavalle aponta que Bolsonaro demonstra uma compreensão “majoritarista” e “distorcida da democracia”, que parte da ideia de que quem tem a maioria dos votos decide tudo:

"Para a participação ser democrática, é preciso contar com certas características e garantias. Há espaços de inserção de atores relevantes e plurais que obedecem a determinadas regras. Isso é diferente da forma como Bolsonaro entende a participação".

Participaram ainda do levantamento do Cebrap as professoras Débora Rezende (UnB), Monika Dowbor (Unisinos),Rebeca Dantas (UnB) e Alessandra Ribeiro (USP).