Aprovação de autotestes busca reduzir defasagem no monitoramento da Covid-19
Anvisa liberou comercialização de testes caseiros nas farmácias. Os kits, porém, não serão considerados para confirmação de diagnóstico.
Pode não ter sido você, mas é muito difícil que, a esta altura, não saiba de um parente, um amigo, um vizinho, um colega de trabalho que, desde dezembro, não tenha contraído a Covid-19. E se acompanhou, minimamente, as notícias locais e nacionais, viu também a “ruma” de gente na porta das farmácias e de grandes espaços públicos, como o Geraldão, para saber se está com coronavírus, com resfriado ou com uma crise de rinite…
A testagem é fundamental como medida de controle sanitário, pois define quem deve se isolar, evitando que a doença se espalhe e sobrecarregue os serviços de saúde. O problema é que hoje a proliferação da Ômicron se dá após meses de flexibilização nas medidas restritivas, que resultaram na retomada de boa parte das atividades presenciais. Ninguém quer (ou pode) parar a rotina, então, seja para justificar o afastamento do trabalho, seja para ir a um evento ou fazer uma viagem com mais segurança, todo mundo corre para se testar ao mesmo tempo.
A procura é tanta que, para reduzir as filas, o Governo do Estado decidiu reativar o posto do Centro de Convenções, que deve voltar a funcionar na próxima semana, depois de abrir um novo no Parque Dona Lindu, totalizando sete locais de testagem na Região Metropolitana. Além disso, o secretário estadual de Saúde, André Longo, disse que a pasta encaminhará, nas próximas semanas, cerca de 600 mil kits aos municípios.
Na Capital, a Prefeitura do Recife anunciou a abertura de um ponto no campus da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), em Dois Irmãos, e a ampliação da oferta para atender 4.800 pessoas por dia.
É no meio deste cenário que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, por unanimidade, na última sexta-feira (29), a comercialização dos “autotestes”, que permitem às pessoas se examinarem por conta própria, sem a intermediação de um profissional para fazer a coleta e verificar o resultado. Ainda vai levar um tempo para que as pessoas possam comprar os testes caseiros nas farmácias, já que as empresas interessadas em fornecer os kits deverão pedir ao órgão regulador o registro do produto antes de colocá-lo à venda.
Gargalo nacional
Embora o contexto geral seja diferente, com a vacinação produzindo quadros majoritariamente mais leves e segurando uma alta significativa nas estatísticas de mortes, a situação atual lembra, em pelo menos um aspecto, a primeira onda, em 2020. A circulação da mais transmissível das variantes do novo coronavírus, a Ômicron, provocou uma “explosão de casos”, gerando, novamente, uma demanda crescente pela realização de testes.
Há dois anos, quando o agravamento da crise sanitária colapsava os hospitais e a vacina começava a ser concebida pelas grandes farmacêuticas, a capacidade de testagem era vista como um dos principais gargalos nacionais na contenção da pandemia.
Na época, a disponibilidade dos testes tipo RT-PCR - o exame de swab nasal considerado “padrão ouro” - mostrava-se insuficiente e, assim, quem se testava eram, basicamente, os sintomáticos, esperando por um resultado que levava até uma semana para sair. Muito distante dos relatos que vinham de países como a Coreia do Sul, cuja política de testagem em massa se tornava exemplo para o mundo, o Brasil enfrentou a chegada do Sars-Cov-2 sem saber direito onde e para qual direção o agente infeccioso avançava.
A defasagem se mantém até hoje. Segundo levantamento da plataforma Our World in Data (em inglês, “Nosso Mundo em Dados”), o País realiza, em média, 311,25 testes para cada mil habitantes, índice muito abaixo dos números registrados em outras nações de dimensões continentais, como Estados Unidos, Rússia e Austrália, onde a disponibilidade de exames é maior do que o tamanho da população.
Novos testes rápidos
Em 2020, havia apenas duas opções de testes: o já citado RT-PCR, o mais preciso; e o sorológico, que detecta se a pessoa foi ou não contaminada pelo vírus após análise dos anticorpos em uma coleta de sangue tirada no fim do ciclo da infecção.
No ano passado, o acesso à testagem se ampliou com a chegada dos testes de antígeno. O exame até parece o RT-PCR no começo: primeiro, se extrai, com um cotonete, uma amostra de secreção no fundo do nariz. No entanto, diferentemente do que ocorre no “padrão ouro”, neste, o resultado sai em menos de 20 minutos. Logo após a coleta, a amostra é diluída em uma solução contendo anticorpos para o Sars-Cov-2 e, depois, despejada em um papel. Caso as substâncias sejam reagentes, um traço aparece no marcador, o que significa que deu positivo para a infecção ativa. Se não tem traço, é porque deu negativo.
Os autotestes funcionam da mesma forma. “Os reagentes, que são os anticorpos para aquela partícula viral, estão marcados [no papel]. É bem simples. Quando você pinga a gota na celulose, ela vai preenchendo a cartela e, naquela ‘caminhada’ sobre o papel, se tiver o vírus, ele se liga ao anticorpo. Nesse momento, eles vão subindo juntos até chegar ao mesmo nível. É quando você vê a linha”, explica o professor de Bioquímica e diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Luiz de Lima Filho, que também atua no Instituto para a Redução de Riscos e Desastres de Pernambuco (IRRD).
Controle sanitário
Com uma precisão menor em relação ao RT-PCR, o teste caseiro e o de antígeno não são considerados para confirmação de diagnóstico. Por isso, segundo a decisão da Anvisa, quem usar o autoteste e for “positivado” terá que fazer o exame molecular para que o caso possa ser notificado.
Apesar disso, os testes rápidos podem ser bastante úteis na identificação e, consequentemente, no isolamento de possíveis infectados.
“À primeira vista, é uma excelente medida. Quanto mais testes você disponibiliza para a população, melhor, porque se sabe como ela está. Mas a questão é o viés de observação. Se não tivermos um canal de monitoramento desses resultados, podemos ter um viés da própria qualidade do teste, que tem uma eficiência reduzida. Uma empresa poderá, por exemplo, distribuir autotestes para os funcionários e, dando negativo, dizer que ali é um ambiente seguro, sem casos. Esse autoteste é suficiente para isso? Nós temos a educação para saber utilizá-lo?”, questiona o pesquisador do Lika/UFPE, Jones Albuquerque.
Na visão do professor José Luiz de Lima Filho, para evitar a subnotificação, seria preciso haver um incentivo para que a população reportasse os resultados do autoteste às autoridades.
“A gente vai perder um pouco o controle porque a ideia era que as pessoas fizessem o autoteste e colocassem na página das secretarias o resultado, o que seria uma resposta maravilhosa para a saúde pública. Eu imaginava que aqui no Brasil fosse feito como no Reino Unido, onde os testes são gratuitos e você pede em casa. Mas, de qualquer forma, se as pessoas fizerem o autoteste e seguirem a recomendação de ficar isoladas, já é um ganho importante”, comenta.
Cobertura obrigatória
A decisão da Anvisa vem na esteira de uma resolução emitida por outro órgão regulador, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que, desde o último dia 20, obriga os convênios a cobrir os custos dos usuários com testes de Covid-19, incluindo os rápidos. Mas, para isso, é preciso ter uma requisição médica.
“Isso não quer dizer que eu posso sair da minha casa, ir a uma farmácia, comprar um teste desses e exigir ser reembolsado pelo plano. Não é assim que funciona. Você tem que, de fato, procurar um profissional, e ele requisita a realização do teste, não necessariamente o RT-PCR. E isso só pode se dar entre o primeiro e o sétimo dia de sintomas. E aí, nessas circunstâncias, o plano é obrigado a fornecer esse teste”, explica o advogado especialista em direito médico e da saúde, Ítalo Negreiros, da Martorelli Advogados.
Para que a Anvisa pudesse liberar a comercialização dos autotestes, foi necessário que o Ministério da Saúde encaminhasse ao órgão informações sobre eventuais políticas públicas envolvendo a autorização. Segundo informou a pasta, o projeto não contempla a distribuição gratuita na rede pública, prevê apenas a disponibilidade nas farmácias.
Na avaliação de Negreiros, a resolução da ANS se deu em um momento oportuno. “Os exames laboratoriais demandam um custo maior e mais tempo, e a capacidade de testagem do nosso País está totalmente sobrecarregada. E isso impacta as políticas públicas”, observa.