Paleontólogos contestam papel da carne na evolução
Fósseis contrariam tese de que hábito carnívoro fez 'Homo erectus' ganhar altura e cérebro mais desenvolvido
A “dieta paleolítica”, ancorada no consumo de proteína animal, cresceu em popularidade na última década, mas foi fruto de uma ideia que vem sendo questionada. Seu princípio é o de que a alimentação mais saudável para humanos é aquela com a qual o Homo sapiens evoluiu em sua história natural. A base científica que sustenta a difusão dessa hipótese está agora no centro de um debate acadêmico.
Numa época em que ainda não existia agricultura, há 2 milhões de anos, uma espécie que nos precedeu, o Homo erectus, criou ferramentas eficazes para caçar e processar animais. O registro paleontológico sugeria que a maior disponibilidade de proteína impulsionou o aumento do cérebro e da estatura e mudanças gastrointestinais que culminaram na forma do humano moderno.
É o que defendeu, num artigo de 2007 intitulado “A carne nos fez humanos”, o paleoantropólogo Henry Bunn, da Universidade de Wisconsin. Enquanto outros ainda questionavam se o carnivorismo era causa ou consequência da evolução humana, Bunn postulou que a precedência do consumo de carne no registro fóssil respondia à pergunta.
“O que estaria causando pressão seletiva e impulsionando adaptações mais parecidas com o jeito humano de buscar alimentos? A carne!”, escreveu.
Um dos pilares da hipótese era que, quando se estimava a idade dos fósseis de H. erectus na África, os mais recentes eram com frequência encontrados junto de ossos de animais com marcas de corte. Era sinal de que o hominídeo em processo de transformação estava comendo cada vez mais carne.
Essa teoria contrariava outra, de Richard Wrangham, da Universidade Harvard, para quem o advento do fogo (e do cozimento) foi mais decisivo no caminho evolutivo humano. O excedente de proteína e energia necessário a um cérebro grande seria sido suprido por tubérculos e alimentos difíceis de ingerir, mas que podiam então ser cozidos.
Apesar de o debate continuar no meio acadêmico, defensores de Bunn ganharam a batalha na cultura popular. E a moda da dieta paleolítica fincou raízes.
Um estudo publicado na semana passada por paleoantropólogos, porém, abalou uma das fundações da hipótese de que “a carne nos fez humanos”. Ao fazer uma análise detalhada dos fósseis de Homo erectus que eram encontrados com animais comidos, um grupo da Universidade George Washington viu que a conclusão sobre aumento no consumo de carne era fruto de amostragem enviesada.
Liderados por Andrew Barr, os cientistas constataram que sítios arqueológicos mais recentes só pareciam exibir mais evidências de carnivorismo porque tinham sido mais bem escavados e estudados. Em outras palavras: quem procurou mais, achou mais. Ao corrigir o viés, o grupo de cientistas mudou a perspectiva.
“Nossa análise não mostra um aumento sustentado na quantidade relativa de evidências para consumo de carne depois da aparição do Homo erectus, pondo em xeque a primazia do carnivorismo em moldar sua história evolutiva”, escreveram em artigo na revista PNAS.
Essa constatação não significa que a ingestão de carne foi irrelevante para a evolução humana, mas questiona seu papel em gerar diferenças entre humanos modernos e outros primatas.
A dúvida sobre o quão saudável é uma dieta carregada em proteína animal, de qualquer modo, foi estudado de modo independente da paleoantropologia, com a observação de humanos vivos. Algumas pesquisas apontaram a dieta ancorada em carne e fruta como eficaz para eliminar sobrepeso
Esse emagrecimento, porém, veio com um risco. Ao limitar o consumo de legumes, tubérculos, grãos e leite, estudos mostraram que a dieta paleolítica prolongada expõe pessoas a deficiências de alguns nutrientes. E se o consumo de carne se excede, podem surgir problemas de homeostase (equilíbrio do organismo) como acúmulo de fatores de risco para diabetes e defeitos metabólicos.
Mesmo entre pessoas com tendência para engordar, a dieta paleolítica não se mostrou especial em relação a outros regimes da moda, como o jejum intermitente ou a dieta mediterrânea.
“A dieta paleolítica não diferiu de outros tipos de dieta vistas como saudáveis quando observados efeitos na homeostase de insulina e glicose nos indivíduos com metabolismo de glicose alterado”, escreveu a nutróloga Malgorzata Jamka em estudo de 2020 que revisou a ciência da década anterior.
Enquanto paleontólogos não entram em acordo sobre o cardápio do Homo erectus, o que funcionou melhor foi construir dietas com a ciência da nutrição aplicada a humanos modernos vivos.