Opinião

A Lei de Incentivo à Cultura e o homicídio doloso

Na medida do possivel amparado pelas experiências pública e privada que acumulei em quase três décadas de atuação profissional, tenho procurado alertar, em ocasiões propícias para tal (como neste espaço da Folha), sobre três questões básicas que têm afligido o setor cultural nos últimos anos.

Em primeiro, o desastre que tem sido agregar desconhecimento, desinformação e desinteresse no trato com as políticas públicas. Em segundo, as falhas conceituais que têm sido defendidas através de propostas e ações sem compromisso com os valores econômicos e que, por conseguinte, consagram a baixa prioridade setorial. Por fim, os riscos inerentes à uma suposta supremacia ideológica, transformada numa espécie de fanatismo capaz de eliminar produtos, agentes e artistas. 

Mesmo que também tenha evitado acirrar os ânimos e daí fazer uso exagerado de eventuais defesas de um setor onde atuo, haverá o momento da inflexão. O limite da tolerância tem seu alcance e está ali à frente. Não obstante os efeitos da pandemia, que parece ter devastado cerca de 10 milhões de empregos pelo mundo (de acordo um relatório recente da UNESCO), os ataques mortais que aqui continuam sendo disparados para a combalida "Lei Rouanet" tornaram a rotina da produção setorial um estresse permanente. Como a frequência desse "crime de lesa-identidade" nacional virou uma obsessão fanática, traduzida pela ignorância política e robustecida pela narcose digital, a sentença de morte estava pronta. Após tantas instruções afinadas com tal propósito, que geram as provas de atitudes comissivas e intencionais, arvoro-me de intuir que as medidas recém-anunciadas caracterizam uma espécie de "homicídio doloso".

Diante de um mantra enfadonho que resumiu o incentivo fiscal à cultura como um "privilégio", que reproduz apenas uma sangria de dinheiro público para artistas imbuídos de papéis de vampiros, não houve ouvidos nem olhos para outro nível de entendimento. Nada de querer saber sobre geração de rendas e empregos. Nenhum interesse sobre a baixíssima participação do setor na composição total dos incentivos. O que valeu fazer até agora foi transbordar o desconhecimento, a desinformação e o desinteresse, no rio caudaloso da ignorância. Nesse ambiente, vale mal interpretar os números e descredenciar conceitos sólidos. E para forjar um falso discurso de que o mérito das medidas está na intenção de ampliar o acesso, apenas comprovam dois fatos. Primeiro, agem como bons intervencionistas, pois aqui dão às costas para o mercado e consagram uma certa fleuma liberal, com aparência de exercício de conveniência. Depois, atestam o brutal  desconhecimento do setor, quando nessas intervenções estipulam limites de valores e prazos.

De fato, nada mais incoerente para quem prega o livre arbítrio ou a autonomia para o exercício das escolhas, que fixar valores como limites operacionais. Pior que isso, é fazê-los indignos, diante do velho mantra do subjetivismo que está por trás de se dizer se o artista ou o palco "valem pelo que pesam". No talento ou nas condições do ambiente mais adequado ao ofício. E o que dizer da imposição normativa do ente público, na relação privada entre patrocinador e patrocinado?

Estabelecer que o patrocínio não se renova depois de dois anos não representa uma quebra no direito de escolha de quem antecipa recursos, que só serão deduzidos no ano fiscal seguinte? O direito de se contentar com os resultados não representa também uma quebra na liberdade de escolha? Pior: o que dizer de patrocinados que lutaram anos para conseguir patrocínios estáveis, conquistados dignamente por conta dos seus resultados? Pires na mão é o desejo implícito nas medidas?

Como nao posso imaginar que seja ingenuidade crer numa reação de transferência de recursos por imposições desse tipo, não há outra conclusão: ideologia anticultura e populismo na veia.

Que o bom senso seja restaurado e que permita quem faz uma parte da cultura acontecer trabalhar dignamente. À parte que não cabe no incentivo, que seja olhada diretamente pelos recursos públicos. Embora os cortes orçamentários de outras áreas importantes e sustentáveis também digam o contrário.

 

Economista e colunista da Folha de PE

 

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