'O desmatamento da Amazônia faz mal para a saúde', diz cientista brasileira
Ambiente e saúde são indissociáveis, afirma a cientista Mariana Vale, do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Desmatar a Amazônia faz mal à saúde, pois propicia o surgimento de vírus capazes de se espalharem pelo Brasil e o restante do mundo. O alerta está num artigo publicado este mês na revista Science Advances sobre a prevenção de pandemias.
Ambiente e saúde são indissociáveis, afirma a cientista Mariana Vale, do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade.
Vale é uma das autoras do artigo na Science Advances. Também integra o grupo de trabalho do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que prepara o relatório “Mudanças Climáticas 2022: Impacto, Adaptação e Vulnerabilidade”, que será lançado ainda este mês.
Qual o peso do desmatamento no surgimento de pandemias?
É imenso. O desmatamento é uma das maiores causas, se não a maior, de transbordamento de vírus e outros patógenos. (Transbordamento, do inglês spillover, é a passagem de microrganismos de animais silvestres para seres humanos). Temos que lembrar que a hipótese mais provável para o surgimento do Sars-CoV-2 é a transmissão de coronavírus de morcegos para seres humanos. A emergência da maioria das zoonoses (infecções de origem animal) recentes está ligada ao desmatamento.
E por que o risco da Amazônia é o maior, por exemplo, do que o da China, país de origem da atual pandemia?
Porque a Amazônia tem a maior biodiversidade do mundo. Em especial, uma enorme riqueza de espécies de roedores silvestres, primatas e morcegos. E esses três grupos de animais têm uma proporção significativamente mais alta de vírus com potencial de causar doença em humanos.
Mas as pessoas não comem morcegos no Brasil...
Ao avançar para dentro da floresta, o desmatamento coloca populações humanas em contato com os morcegos. Além disso, há outros fatores além do desmatamento e a ele ligados, o principal é a caça.
Qual o impacto provocado pela caça?
O consumo de carne de caça de primatas e roedores, como pacas e capivaras, é comum nas cidades da Amazônia. Populações tradicionais e indígenas caçam para subsistência, em pequena quantidade. Mas nas cidades amazônicas há um vasto mercado de carne de caça. Um estudo recente calculou que mais de 10 mil toneladas de carne de caça são consumidas por ano, somente em 62 municípios da Amazônia central. Em termos econômicos, isso equivale à produção de madeira dessa região.
Por que o desmatamento da Amazônia é tão nocivo à saúde?
O desmatamento da Amazônia faz mal para a saúde porque ele coloca em contato homens e vírus, que eram mantidos sob controle pela floresta. Mas não é só. A Amazônia tem uma combinação de cidades com pouca capacidade de identificar e conter surtos de infecções e conexão com o restante do Brasil e o mundo. Ou seja, os patógenos passam a adoecer as pessoas e conseguem se espalhar. Isso é bem documentado na Amazônia e é a receita para problemas muito maiores, isto é, pandemias.
Poderia dar exemplos?
Surtos de febre amarela, de mayaro e Oropouche (vírus que causam sintomas semelhantes, respectivamente, a chicungunha e dengue). E há a malária. É bem conhecido que surtos de malária ocorrem em áreas recém-desmatadas, são chamados de malária de fronteira. Pelo menos 187 vírus de vertebrados já foram isolados na Amazônia. A maioria deles é transmitida por mosquitos, o que reduz o risco de pandemias, pois a temperatura e o próprio ciclo de transmissão dificultam a propagação. Porém, não podemos esquecer que os morcegos brasileiros também carregam coronavírus beta, como o Sars-CoV-2. E nunca houve sequer pesquisas extensas sobre os coronavírus de morcegos amazônicos. Os roedores silvestres são hospedeiros de hantavírus, também perigosos.
Combater o desmatamento é combater pandemias?
Sim. É a forma mais barata e eficiente de evitar o surgimento de novas doenças. É um jogo de ganha-ganha. O desmatamento favorece pouquíssimas pessoas e prejudica a maioria da população. Conservar a floresta é equilibrar o clima, proteger a água, manter a biodiversidade, assegurar a produção agrícola e evitar que doenças surjam, pois o desmatamento coloca o ser humano em contato com vírus que de outra forma não sairiam da mata.