PEC do laudêmio obriga compra fatia da União em imóveis à beira-mar
Governo fala em incentivo à grilagem
Uma proposta de Emenda à Constituição (PEC) aprovada na Câmara nesta semana obriga os donos de imóveis localizados nos chamados terrenos de marinha, à beira-mar — hoje ocupados em regime de aforamento —, a comprarem a parte remanescente da União, impactando bens que valem, segundo estimativas do governo federal, entre R$ 500 bilhões e R$ 1 trilhão. A maior parte dos imóveis com essa configuração fica no Rio.
O impacto, tanto no bolso dos proprietários como nas contas do governo, seria bilionário, caso a proposta seja aprovada pelo Senado, e obrigaria os proprietários a pagarem, em até dois anos, 17% dos valores de seus bens. Por exemplo: quem tem um apartamento à beira-mar de R$ 2 milhões, teria que desembolsar à União R$ 340 mil sob o risco de ficar inadimplente.
Além disso, a PEC transfere parte dos terrenos no litoral para estados e municípios e autoriza a regularização de terrenos irregulares, o que poderia favorecer a grilagem e a judicialização destes imóveis. Essa é a posição do secretário de Desestatização do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord, que em entrevista ao GLOBO afirma que a PEC irá criar uma judicialização do assunto, afetando os donos de cerca de 500 mil imóveis no país.
— A pessoa vai ter que pagar o valor do terreno em até dois anos. Na prática, a gente vai arrecadar esse meio trilhão na marra — disse.
Ele defende que a compra dos imóveis não seja obrigatória, seguindo um instrumento que já existe hoje por meio de um aplicativo da Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Os imóveis construídos nesses terrenos têm escritura, mas os moradores são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa de aforamento sobre o valor do terreno. No regime de aforamento, a propriedade do imóvel é compartilhada entre a União e um particular (cidadão ou empresa).
Isso é dividido na proporção de 83% do valor do terreno para o cidadão e 17% para a União. Por conta dessa divisão, ocupantes destes imóveis pagam, atualmente, duas taxas para a União: o foro e o laudêmio. A taxa de foro equivale a 0,6% ao ano sobre o valor do terreno. Já o laudêmio é de 5% sobre o valor do terreno, sendo cobrado apenas no caso de venda do imóvel.
A PEC acaba com os pagamentos das taxas, mas obriga os proprietários dos imóveis a comprarem a parte que cabe à União em até dois anos. Se não o fizerem, ficam inadimplentes com o governo.
— A gente entende o mérito que se tentou atingir, que é resolver um problema histórico. A questão é que a forma como isso está sendo tratado — disse Mac Cord. — São cerca de 500 mil pessoas ou empresas no Brasil que vão ser obrigadas a arranjar uma fortuna, de no mínimo R$ 500 bilhões, para pagar ao governo federal. Algo que hoje pode fazer, mas é opcional. A gente não pode obrigar a comprar.
O secretário explica que já é possível, hoje, fazer o que é chamado tecnicamente de remissão de foro. Isto é, comprar a parte da União e ser proprietário total do imóvel.
— A PEC diz que não pode mais cobrar o foro e o laudêmio, mas a pessoa que está no imóvel tem que comprar a área num prazo de dois anos. Está forçando todo mundo a comprar. A gente está falando de alguma coisa entre R$ 500 bilhões e R$ 1 trilhão. É uma transferência forçada. Se você mora em um apartamento na frente do mar ou em terreno de marinha, o que a PEC faz é obrigar comprar os 17% ou vai estar irregular — afirmou o secretário.
Para ele, a transferência sem cobrança também não é correta porque fere a propiedade da União e iria representar uma baixa de pelo menos R$ 500 bilhões no balanço da União.
Um dos problemas hoje é que a avaliação do imóvel precisa ser feita pela SPU. O secretário defende que a precificação desse terreno seja feita com base na planta usada pela prefeitura para o IPTU. Para isso, seria necessário uma mudança legal — mas não uma PEC.
— A gente tem que simplificar a forma de avaliação, deixando para a avaliação ser na planta de valores do IPTU. É preciso que seja dada a possibilidade, de uma maneira simples, e com o valor que a pessoa conhece. Com isso, a gente dá um desconto, que estamos propondo que seja de 50% — disse, salientando que com a PEC não haveria esse desconto.
A PEC ainda autoriza a transferência de terrenos de marinha da União para municípios com o objetivo de “expansão do perímetro urbano”. Quem não é inscrito na SPU, mas usa esses terrenos há cinco anos, também teria direito à remissão do foro. Isso, para Mac Cord, incentiva a grilagem.
— Uma coisa é quem está escrito regularmente, com quem a gente tem registro. Mas a gente não tem registro de todos. Como é que a gente vai esperar quem está irregular da noite para o dia? Vai ocorrer uma corrida ao litoral.
Os terrenos de marinha existem desde que o Brasil era parte do reino de Portugal. Eles foram instituídos em 1818 para garantir a defesa nacional, em caso de um possível ataque inimigo, e para assegurar o acesso livre da população ao mar. Mas, logo após a Independência, o Império descobriu que poderia também lucrar com esses terrenos.
Em 1831, a lei orçamentária previu pela primeira vez a sua exploração por terceiros, mediante o recolhimento de taxas. A essa operação era dado o nome de aforamento ou enfiteuse, sistema trazido para o Brasil ainda nos primórdios da colonização, com a criação das capitanias hereditárias.
Utilizando-se a média de marés altas do ano de 1831, foi traçada uma linha imaginária. Todas as propriedades particulares que estivessem dentro de uma faixa de terra de 33 metros (alcance de uma bala de canhão) a partir do mar ou dos rios navegáveis teriam de pagar foro à Coroa (taxa anual), além de um percentual no caso de venda (o laudêmio).
Mudanças na legislação e nas marés, ocupação irregular e construção de aterros legais e ilegais ao longo das praias e lagoas alteraram a localização original dos terrenos de Marinha, fazendo com que houvesse cobrança inclusive para imóveis localizados bem além dos 33 metros.
O ataque naval ao Rio nunca aconteceu, mas, quase dois séculos depois, os terrenos de marinha ainda representam uma dor de cabeça para os proprietários e permanecem compondo a base de imóveis da União.
Existem 73.458 imóveis aforados no Rio, segundo o ministério. Além da capital, há imóveis nessa situação em Angra dos Reis e Niterói, por exemplo.
Ocupantes de edifícios importantes do Rio, construídos na orla da Zona Sul, ainda precisam pagar as taxas, que são cobradas por cada unidade. Segundo o Ministério da Economia, é o caso de prédios famosos como o Edifício Seabra, o Edifício Praia do Flamengo e o Edifício Biarritz, todos na Praia do Flamengo.
A PEC não acaba com o laudêmio revertido a descendentes da família imperial em Petrópolis. Esse laudêmio não tem relação com os terrenos de marinha.
Como a cidade tem como origem uma propriedade privada adquirida por Dom Pedro I e herdada por Pedro II, moradores do Centro da cidade pagam 2,5% em transações imobiliárias.
Com a recente tragédia provocada pelas chuvas, houve cobranças na cidade para que o dinheiro da taxa seja revertida para a reconstrução.
No regime vigente nos chamados terrenos de marinha, categoria criada ainda antes da Independência do país sob o argumento de que seria uma forma de assegurar a proteção da costa. Os donos desses imóveis têm escritura de propriedade, mas ela é compartilhada com a União. O proprietário tem que pagar ao governo federal uma taxa anual equivalente a 17% do valor do terreno.
É a cobrança de uma taxa de 5% sobre o valor venal de um terreno em transações de venda de imóveis originariamente pertencentes à União, como os da orla marítima. É pago pelo vendedor do bem, mas não é considerado um tributo.