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Dois anos sem Carnaval: foliões buscam alternativas para matar saudade da festa nas ruas

Quem é, de fato, pernambucano mantém viva a tradição e arranja alguma forma de brincar ou, ao menos, compensar ausência. Conheça histórias.

Do quarto, João Cumaru, 28, assiste a lives dos blocos e não vê a hora de voltar às ladeiras - Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

Não adianta se o Recife está longe
A saudade é tão grande
Que eu até me embaraço
Parece que eu vejo Valfrido Cebola no passo
Haroldo Fatia, Colaço
Recife está perto de mim...


Personalidade das mais importantes na agitada cena cultural brasileira do século 20, Antônio Maria (1921-1964) é o nome por trás de alguns dos mais belos hinos intrincados na memória afetiva de quem brinca o Carnaval em Pernambuco. Dentre eles, o “Frevo nº 2 do Recife”, famoso na voz de Maria Bethânia em gravação de 1969. Nesta que é uma verdadeira crônica em forma de canção, o recifense radicado no Rio de Janeiro descreve a saudade da maior festa popular da cidade natal (e do Estado) por meio das figuras ilustres “do Clube das Pás”, “dos Vassouras”, “passistas traçando tesouras”, “Valfrido Cebola no passo, Haroldo Fatia, Colaço”.

Mais de cinco décadas depois, quem poderia imaginar que aquele eu lírico de Antônio Maria descrevesse tão bem o sentimento de toda uma população de hoje? Estes últimos dois anos de pandemia deixaram milhões de saudosistas com aperto no peito, impedidos de se largarem nas ruas, praças e ladeiras, pulando feito pipocas no calor efervescente dos trópicos nordestinos.

Porém, quem é, de fato, pernambucano - para citar outro desses belos clássicos, “É de fazer chorar”, de Luís Bandeira (1923-1998) - mantém viva a tradição e sempre arranja alguma forma de brincar ou, ao menos, compensar essa ausência.

Folia em casa
Na vida de Skarleth Simonetti, o colorido do Carnaval não pode faltar. Fã de Chico Science (1966-1997) e da banda Nação Zumbi, a empresária de 28 anos é daquelas foliãs que cansaço nenhum abate, faça chuva, faça sol. Todo ano, ela vai de manhã a Olinda, onde acompanha os desfiles das troças na Cidade Alta, e, depois daquela parada estratégica em casa, curte os shows da noite no Recife Antigo. Isso, se puder, nos quatro dias do feriadão. “Sou completamente apaixonada por tudo que envolve e valoriza a nossa cultura”, diz.

Mas, mesmo com a festa cancelada, Skarleth não abre mão de festejar. Assim como no ano passado, sem poder se misturar à multidão nas ruas, o jeito é montar a festa no apartamento onde mora com o marido, Victor, e a cadelinha Pipoca, no bairro de Candeias, Jaboatão dos Guararapes.

“Brinco que eu comia glitter todos os dias no Carnaval, porque era toda ‘glitterinada’, dos pés à cabeça, com alguma fantasia, um chapeuzinho… E aí, com a pandemia, comecei a enfeitar minha casa com acessórios carnavalescos. Boto músicas de Carnaval, me fantasio, passo glitter no meu marido, a minha enteada se fantasiou também. Até na cachorrinha boto um acessório. Fizemos um churrasco e chamei só a família mesmo. Este ano vou fazer a mesma coisa. Não quero deixar de ter essa magia e essa energia boa. Eu acho que a gente tem que curtir do jeito que dá”, afirma.

Skarleth, 28, com o marido, Victor, e a cadela Pipoca: pronta para o Carnaval (Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco)

Festejar com moderação
Apesar da redução no número de casos e mortes nas últimas semanas, o novo coronavírus continua circulando com uma taxa de transmissão ainda alta, o que, não custa lembrar, motivou o cancelamento do Carnaval 2022. Porém, é fato que, diferentemente do que ocorreu em boa parte dos anos anteriores, o cenário, com a vacinação mais avançada, permite uma flexibilização nas restrições.

Por isso, principalmente para quem for tirar folga nesses dias e aproveitar para encontrar os amigos ou viajar, não se deve relaxar nos cuidados que ajudam a prevenir a doença: uso de máscara, higienização das mãos e distanciamento sempre que possível (veja no infográfico abaixo).

Pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz-PE) e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o epidemiologista Rafael Moreira analisa que, depois de tanto tempo de crise sanitária, com os dados de infecções fazendo parte da rotina, muitas pessoas deixam de perceber a gravidade da pandemia.

“A gente acaba se acostumando com aquela frequência regular, que, atualmente, é de cerca de mil óbitos por dia [em todo o País]. E isso não deve ser encarado como algo natural, embora seja constante. É necessário que a gente mantenha o sistema de alerta e vigilância, tanto na instância institucional quanto na individual”, argumenta.

Caso os cuidados não seja cumpridos, corre-se o risco de um novo pico de circulação do vírus, como, em geral, acontece depois de feriados e datas festivas, a exemplo do pós-Réveillon. “Nesses momentos de alegria, a gente acaba não se preocupando muito com a prevenção de doenças. Falo isso em todos os aspectos, tanto que, durante o Carnaval, a gente sempre reforça a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. É difícil seguir recomendações numa festa que tem por filosofia a aglomeração”, observa.

Na voz e na pele
O amor pelo Carnaval é algo que se estende para muito além dos dias entre o Sábado de Zé Pereira e a Quarta-Feira de Cinzas. Não só revive em outras épocas do ano como se pode carregar na alma e no corpo.

O gestor público João Cumaru, 28, que o diga. Depois de curtir o último Carnaval pouco antes dos primeiros casos de Covid-19, ele e mais um grupo de amigos, incluindo dois cearenses que moraram na Capital pernambucana, se juntaram para produzir um podcast sobre as tradições da folia no Estado. O projeto, intitulado “Eu disse frevo”, tem por objetivo recordar histórias e documentar o trabalho de quem faz a festa acontecer.

“Era terça-feira à tarde, o Carnaval acabando, e a gente sentia que precisava continuar aprendendo e se aprofundando sobre o Carnaval daqui, mas depois a coisa esfriou. Daí, com menos de um mês, veio a pandemia e a gente, no isolamento, resolveu tirar a ideia do papel”, conta Joca, como é conhecido. Acostumado a brincar desde criança, por influência dos pais e do tio, ele pretendia ser mais do que um folião comum. “Eu queria colaborar com a cultura e a tradição, lançando o podcast nessa direção”, afirma.

No meio desse processo, com a pandemia se agravando, a saudade bateu tão forte que Joca decidiu gravar na pele essa ligação. São as duas primeiras tatuagens que fez na vida: uma dupla de passistas na perna e um conjunto de La Ursas no braço.

Na falta da folia, no ano passado, ele celebrou em casa, assistindo às lives dos blocos nas redes sociais. Deve fazer o mesmo neste fim de semana. “É muito mais do que a festa pela festa. Eu encaro como um rito de passagem, quando você extravasa e, depois disso, o ano pode começar. E está faltando. São dois anos já, o vazio é muito grande”, descreve.

Inimigo do fim
O empresário Jonas Lima, 36, nunca gostou da ideia de acabar o Carnaval. Desde os tempos do Recifolia, ele faz questão de se emburacar entre a massa de gente na rua para celebrar a vida, indo todos os dias a Olinda atrás de blocos como Eu Acho é Pouco e Sambadeiras. O gás para frevar é tanto que, nos últimos anos antes da Covid, criou uma festa com marca própria: “Pega fogo, cabaré”. O projeto, organizado com alguns amigos, começou como uma prévia, em 2017, na casa dele, no bairro de Campo Grande, Zona Norte.

"Contratamos uma banda e o DJ Val, e vieram 150 pessoas. Em 2018, a gente dobrou esse número. E a festa deixou de ser prévia, se tornando uma ‘ressaca’, no segundo ou terceiro fim de semana depois do Carnaval”, recorda.

Ao longo desta semana, a nostalgia foi inevitável. “Dá uma dorzinha de impotência mesmo. Se dependesse de mim, todo mês tinha Carnaval”, diz Jonas, que já achou uma alternativa. “No ano passado, a gente organizou uma festa na casa de uma das amigas nossas, que a gente apelidou de Carnalaje. E, muito provavelmente, vamos fazer o Carnalaje Ano II”, conta.

Jonas Lima, 36, não perde um dia de Carnaval (Foto: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco)

A força da tradição
É todo esse amor - e a disposição para brincar até não sentir mais os pés - que mantém acesa a tradição do Carnaval em Pernambuco. “O fato de estarmos há dois anos sem Carnaval, é claro que impacta a continuidade dessas práticas, que sofreram uma ruptura. Mas eu não vejo uma mudança no valor simbólico dessas tradições, no que elas representam para as pessoas”, observa o historiador Luiz Santos, coordenador de Conteúdo do Paço do Frevo.

O pesquisador lembra, no entanto, que a pandemia gerou uma crise profunda em todos os setores envolvidos com a festa, que terá de ser encarada mesmo após o retorno dela. “Tem agremiações que não vão conseguir mais retomar suas atividades e músicos que venderam instrumentos para garantir a sobrevivência. A ausência vai trazer esses impactos, mas a gente precisa achar formas aproveitar essa ausência para valorizar situações que, num tempo normal, não estariam evidentes. E eu vejo grupos de frevo fazendo isso ao compartilhar suas memórias”, analisa.