Guerra na Ucrânia pode acelerar transição energética global
Pode ocorrer na Europa um aumento no uso do carvão, mais poluente, dizem técnicos do setor
O conflito entre Rússia e Ucrânia pode acelerar o processo de transição energética rumo a uma geração de energia mais baseada em fontes renováveis, na visão de especialistas ouvidos pelo Valor.
Com a alta do petróleo, como resultado da guerra, as fontes renováveis, como solar e eólica, tendem a ficar economicamente mais competitivas. Existe também uma necessidade dos países da Europa Ocidental de reduzir a dependência energética da Rússia.
Mas a guerra na Ucrânia também pode representar um risco, a curto prazo, para a continuidade da expansão das fontes de energia mais limpas. O conflito trouxe o receio de uma interrupção no fornecimento de petróleo e gás russos.
Se essa eventual suspensão no suprimento se confirmar, especialistas dizem que a substituição do óleo e gás se dará pelo uso do carvão, que tem previsão de ser gradualmente abandonado, e também pela energia nuclear, que é considerada “limpa”, embora não renovável.
Nesse cenário, pode ocorrer na Europa um aumento no uso do carvão, mais poluente, dizem técnicos do setor.
Os especialistas acreditam, porém, que, mesmo com os impactos da guerra sobre a indústria global de energia, os países europeus devem manter os compromissos assumidos no âmbito dos acordos da Organização das Nações Unidas (ONU) em termos de reduções das emissões de gases poluentes até 2050.
Na opinião do economista Jim O’Neill, pai do acrônimo Bric, a crise na Ucrânia vai ser uma perturbação para a transição energética e forçará muitos países, em especial a Alemanha, a repensarem sua estratégia na área de energia.
A Alemanha, como outros países europeus, depende em boa medida do gás natural exportado pela Rússia.
Maurício Tolmasquim, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, concorda com O’Neill de que a Alemanha, a curto prazo, poderá sofrer “soluços” para avançar mais na transição energética, mas acredita que as metas europeias de descarbonização não vão mudar.
Tolmasquim lembra que a Alemanha tem o compromisso de acabar com a geração a carvão até 2030, além de fechar as três últimas usinas nucleares neste ano.
— Eventualmente, podem prorrogar o fechamento das usinas nucleares, decisão tomada em 2011, depois de Fukushima. No curto prazo eles [a Europa] têm um problema dessa dependência grande do gás russo — diz Tolmasquim.
Ele acrescenta:
— Mas, a médio prazo, a transição vai ser fortalecida porque existe uma intenção muito forte. São duas prioridades centrais na política energética: a descarbonização e a segurança. E as fontes renováveis atendem um pouco aos dois quesitos.
O sócio da área de energias e recursos naturais da KPMG, Anderson Dutra, acredita que no Brasil o cenário de alta nos preços do petróleo e gás pode favorecer o aumento da produção em campos de petróleo e gás maduros, que foram comprados da Petrobras por petroleiras menores nos últimos anos.
Mesmo que o volume seja baixo, ele lembra que há várias empresas que cresceram no país nesse segmento nos últimos anos.
— Quando a lucratividade aumenta, esse mercado fica ainda mais viável — diz.
Dutra lembra também que o cenário internacional favorece a captação de recursos para novos investimentos por parte dessas petroleiras menores.
Edmar Almeida, professor do Instituto de Energia da PUC-Rio, vê uma tendência de aceleração no processo de transição energética e discorda de um possível incentivo para o aumento da produção de petróleo.
Segundo ele, desde meados da década passada não há uma relação direta entre aumento de cotações do barril e crescimento dos investimentos.
Para Almeida, além das metas ambientais traçadas, haverá um forte vetor econômico para a aceleração da transição energética:
— No curto e médio prazos, o conflito tende a aumentar o preço da energia fóssil, o que torna o investimento em energia renovável mais rentável.
Para o diretor de ESG e mudanças climáticas na consultoria Resultante ESG, Lauro Marins, a transição energética de alguma forma já estava desenhada e o conflito pode acelerar a agenda. Mas ele também alerta para riscos de curto prazo no processo.
— Num curto espaço de tempo, há preocupações sobre a manutenção da energia termelétrica na Europa [devido a riscos no suprimento de gás]. A procura por carvão cresceu em janeiro — afirma Marins.
Já a Wood Mackenzie destaca que, a médio e longo prazos, a guerra na Ucrânia poderá causar uma mudança fundamental nas relações comerciais de energia no mundo, em especial com a Europa Ocidental.
A consultoria acredita que haverá uma mudança na relação de dependência dos europeus para a Rússia, por meio da aposta no mercado global de GNL e nas energias renováveis e nuclear.
O diretor de gás natural da Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Adrianno Lorenzon, aponta que a alta nos preços do gás no mercado internacional pode levar alguns consumidores a buscarem outras fontes de energia.
— Caso o barril venha a romper a barreira dos US$ 120, por exemplo, isso poderia inviabilizar a utilização do gás natural em certas indústrias, algumas poderiam pensar em substituí-lo —diz.
Por outro lado, argumenta, o cenário também pode favorecer a produção nacional de gás.
Para o analista sênior de óleo e gás da Bloomberg Intelligence, Fernando Valle, a crise energética que afeta a Europa desde o segundo semestre de 2021 mostra que as renováveis ainda não estão prontas para serem o grande motor da matriz energética.
Ele acredita que a guerra na Ucrânia tende a colocar em pauta a necessidade da diversificação da matriz europeia.