Guerra na Ucrânia

É Kiev ou Kyiv? Entenda por que há mais de um jeito de se referir à capital da Ucrânia

Cidades ucranianas também têm nomes em russo e polonês; governo quer exportar grafia nacional

Centro de Kiev quase deserto - Daniel Leal/AFP

É Kiev ou Kyiv? Se você lê as notícias na guerra na Ucrânia assinadas pela Agência O Globo, certamente responderá Kiev. No entanto, se você também acompanha a mídia internacional, talvez fique em dúvida, já que jornais estrangeiros como o americano The New York Times e o britânico TheGuardian escrevem Kyiv.

Então Kiev é o nome em português e Kyiv em inglês, assim como nós chamamos a capital russa de Moscou e os anglófonos de Moscow? Não exatamente. Kiev é a transliteração do nome russo da cidade (Киев); Kyiv, do ucraniano (Київ).

Tanto o russo quanto o ucraniano (e também o bielorrusso) derivam do eslavo oriental, língua falada, séculos atrás, nas regiões que hoje compõem a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia europeia.


Embora sejam idiomas distintos, os três compartilham o mesmo alfabeto, o cirílico. A diferenciação entre as três línguas se intensificou por volta do século XV, em decorrência do contato com povos invasores, como os mongóis, haviam dominado a Rússia, e os poloneses, que avançaram sobre a Ucrânia. Surgiram o russo (ou grão russo), o bielorrusso (ou russo branco) e o ucraniano.

Tradutor e doutor em língua e cultura russa pela USP, Lucas Simone explica que a distância entre o russo e o ucraniano é semelhante à que existe entre o português e o italiano. Há, entre as duas línguas, uma “compreensibilidade mútua assimétrica”: os ucranianos entendem o russo com razoável facilidade.

Já os russos suam para entender o ucraniano, idioma que, lembra Simone, também sofreu influência do polonês. Muitas cidades ucranianas também têm nomes poloneses. O de Kiev/Kyiv é Kijów. Lviv, chamada em russo de Lvov, é conhecida como Lwów em polonês.

— Foneticamente, o ucraniano é mais próximo do eslavo oriental do que o russo. Gramaticalmente, os dois idiomas são bastante parecidos. Já fonética e lexicalmente, a semelhança do ucraniano é maior com o polonês — afirma Simone.

Com a integração da Ucrânia ao Império Russo, a língua dos dominadores avançou sobre a Ucrânia. Sob a mão de ferro dos tsares, que governaram o império que se estendia do Leste Europeu ao Extremo Oriente, os anseios independentistas dos ucranianos foram sufocados, assim como sua língua, que chegou a ser proibida no século XIX.

Consequentemente, as cidades ucranianas passaram a ser conhecidas no resto do mundo por seus nomes russos.

A Revolução Bolchevique, de 1917, e a criação da União Soviética, em 1922, levaram, inicialmente, à afirmação das culturas e línguas das repúblicas não russas. Após os anos 1930, porém, os idiomas locais voltaram a ser reprimidos e perderam espaço para o russo.

Não à toa, em 2020, o perfil oficial do governo ucraniano no Twitter disse que chamar a capital do país de Kiev é “maluquice” soviética. Nos últimos 30 anos, após a falência do socialismo real, a Ucrânia vem assistindo à revalorização de seu idioma nacional. Ainda hoje, o ucraniano e o russo convivem no país.

Há ainda o dialeto surjik, falado no nordeste do Ucrânia, que mistura os dois idiomas. Segundo Simone, não há uma associação direta entre falar russo e defender políticas pró-Moscou. Ele lembra que o próprio presidente, Volodymyr Zelensky, é mais fluente em russo do que em ucraniano.

Exportar a grafia “Kyiv” é questão de honra para o país. Em 2018, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia lançou a hashtag #KyivNotKiev para convencer governos estrangeiros,veículos de impressa e aeroportos a adotar o nome ucraniano. O Facebook, o NewYork Times, o Guardian e a revista britânica The Economist todos escrevem Kyiv.