'Covid longa': pacientes lidam com sintomas mesmo depois da cura
Sequelas decorrentes da infecção pelo novo coronavírus podem afetar qualquer órgão do corpo. Tratamento envolve abordagem multidisciplinar.
O aprendizado continua. Mesmo depois de dois anos de pandemia, a medicina ainda tem muito a aprender sobre os efeitos que a Covid-19 é capaz de gerar. Além das mortes, que, no Brasil, já passam das 650 mil, sendo mais de 21 mil delas só em Pernambuco, a crise sanitária, agravada por ondas de transmissão de variantes como a Delta e a Ômicron, deixa todo um contingente de ex-infectados com sequelas que podem perdurar pelo resto da vida (veja no infográfico abaixo). Trata-se do que os cientistas chamam de “Covid longa”.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a doença foi prolongada quando os sintomas, ou parte deles, persistem por mais de quatro semanas após o teste positivo. Segundo estimativa da instituição internacional, cerca de 25% das pessoas que tiveram a infecção continuam se sentindo doentes até a quinta semana depois do diagnóstico, enquanto 10% dos pacientes continuam sofrendo com os impactos após três meses.
Inflamação generalizada
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), a pneumologista Margareth Dalcolmo lembra que a “Covid longa” é resultado do processo inflamatório que acomete todos os sistemas do corpo humano no agravamento da síndrome respiratória.
“A doença compromete a microcirculação, venosa e arterial, com a liberação de citocinas tóxicas, inflamatórias e pró-coagulantes, o que caracteriza o quadro que favorece o aparecimento de tromboses, embolias e fenômenos vasculares”, explica. “Essas sequelas dizem respeito a qualquer órgão do corpo, seja o pulmão, o coração, o sistema nervoso central. Então, a ‘Covid longa’ se caracteriza por uma série de sintomas diferentes, eventualmente comprometendo mais ou menos um órgão”.
Além da permanência de sintomas que o paciente já apresentava enquanto estava doente, há a possibilidade de novas complicações aparecerem mesmo semanas após a alta. “A pessoa sai da doença, fica relativamente estável e começa a aparecer um determinado sintoma algum tempo depois. Inclusive, sintomas dermatológicos. Há muitas doenças, chamadas dermatoides, que aparecem após a Covid-19”, alerta a médica.
Tratamento multidisciplinar
Por esse caráter multissistêmico que a Covid-19 possui ao ser capaz de provocar uma reação inflamatória em qualquer órgão do corpo, o tratamento dessa infecção estendida passa pela avaliação de uma equipe multidisciplinar, composta por profissionais de diversas especialidades do campo da saúde, incluindo a medicina, a fisioterapia e a psicologia. A depender da quantidade e da gravidade das complicações, a reabilitação do paciente pode variar bastante, sem um prazo certo para acabar. E isso não acontece só com quem tem um fator de risco alto.
Até contrair a Covid-19 em março de 2021, o motorista Ricardo Amorim, de 62 anos, nunca era um paciente de comorbidades graves. Com a saúde em dia e vida ativa, tinha apenas uma hipertensão leve, controlada sem necessidade de medicação constante. Ao sentir-se mal no dia 13 daquele mês, o morador do bairro da Iputinga, na Zona Oeste do Recife, procurou a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da Caxangá e, em dois dias, foi transferido para a unidade de referência no antigo Hospital Alfa, em Boa Viagem, de onde sairia quase dois meses depois. Durante a internação, chegou a ser intubado e teve de usar ventilação mecânica.
Passado um ano, Ricardo já voltou a andar e falar, mas ainda com dificuldade. Também tem esquecimentos frequentes, além de alterações motoras. “Não tem força para pegar em nada nem escreve mais como antes”, conta a mulher dele, Maria José Conceição, 49, que falou na maior parte do tempo da entrevista para a apuração desta matéria. Porém, de todas as sequelas, a que exige mais atenção se deu nos rins.
Doença renal crônica
Três vezes por semana, Ricardo vai ao hospital para sessões de hemodiálise. Quem tem em casa alguém que sofre com alguma disfunção renal crônica conhece bem essa rotina. O procedimento é delicado e envolve o uso de uma máquina para substituir os rins disfuncionais na tarefa vital de filtrar o sangue e retirar as impurezas do organismo. Depois desse quase um ano desde a saída do hospital, é bastante provável que ele passe o resto da vida dependendo da “diálise”.
“Ricardo não era um ‘candidato’ a entrar em hemodiálise, a não ser que outros fatores acontecessem na vida dele”, diz a nefrologista Ana Carolina Pessoa, pós-doutora em nefrologia pela National Institutes of Health (NIH), de Bethesda (EUA), que atua nos hospitais da Restauração e Maria Lucinda, no Recife. “Existem estudos que mostram a presença do novo coronavírus nas células renais, mas é muito cedo para dizer se essa presença vai causar insuficiência renal crônica, com necessidade de hemodiálise”.
Segundo a especialista, o próprio processo de internamento prolongado pode lesionar os rins. “O paciente, quando usa a ventilação mecânica, muitas vezes, tem queda de pressão e precisa de medicações. Tudo isso são fatores de risco que vão lesando o rim, o que a gente chama de lesão renal aguda, com três semanas de hemodiálise. Passando disso, começa-se a chamar de doença renal crônica”, explica.
Nessa falta de funcionamento dos rins, é preciso seguir uma dieta restrita, com uma ingestão de líquido menor do que a recomendada para as outras pessoas. “O ideal é que ele tome até 2 litros entre uma sessão e outra. Se tomar mais do que isso, começa a afetar o coração e os pulmões”, detalha a médica.
Diante de tudo isso, Maria José reforça o que se diz desde o começo da pandemia: a necessidade de manter os cuidados para evitar a doença. “Quem passa é quem sabe. Algumas pessoas ainda dizem que [a Covid] não é bem assim, mas é”, alerta. “É uma tristeza muito grande fazer hemodiálise. Tem que ter muita paciência para voltar ao que era. Não é fácil”, complementa Ricardo.
Longa infecção
Um fator que amplia o risco de aparecimento de sintomas ocorre nos casos em que o próprio ciclo de infecção se prolonga. Sentindo irritação na garganta, enjoos, dor de cabeça e um pouco de tosse, a contadora Iris Leite, 43, teve a doença por mais tempo que o normal. De 27 de janeiro a 10 de fevereiro, foram três testes positivos, ultrapassando os 10 dias habituais.
“Só vim a testar negativo no dia 12. Fiquei 17 dias [com o vírus]. Minhas amigas me disseram que eu podia voltar à vida normal com 11 dias, sem precisar de teste. Mas eu não queria ter nenhum problema. Acho que é por isso que muita gente está se infectando”, especula.
Embora saia da média, a pesquisadora Margareth Dalcolmo lembra que cada paciente seja visto de maneira individualizada. “Com a cepa Ômicron, hoje a dominante entre nós, consideramos que o isolamento deve ser de sete dias, porém sabemos que algumas pessoas ficam apresentando teste de antígeno positivo a partir do oitavo dia. Não consideramos isso replicante, ou seja, contaminante. Nós recomendamos que a pessoa saia do isolamento e possa ter uma vida normal, mantendo o uso de máscara, que ainda é fundamental”, afirma.