Coronavírus

Dois anos de pandemia: os personagens por trás do combate à Covid-19

OMS decretou pandemia em 11 de março de 2020. De lá para cá, o coronavírus matou mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo

Jogo Brasil e Argentina foi suspenso pela Anvisa - Nelson Almeida/AFP

Com Neymar e Messi em campo, o craque do jogo entre Brasil e Argentina no dia 5 de setembro de 2021 foi Yunes Eiras Baptista, de 57 anos. Servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde sua fundação, há 23 anos, o fiscal interrompeu a partida válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo para retirar de campo jogadores argentinos que desrespeitaram as regras sanitárias do Brasil. Na época, uma nova variante da Covid-19 deixava o mundo em alerta e qualquer viajante que tivesse passado pelo Reino Unido deveria fazer 14 dias de quarentena para entrar no país, o que foi descumprido por quatro atletas argentinos.

Dois anos depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar a pandemia, em 11 de março de 2020, Yunes faz parte de um contingente de profissionais da área da saúde até então anônimos que ajudaram a enfrentar "a maior crise sanitária mundial da nossa época", segundo declarou o próprio órgão internacional. No Brasil, a Covid-19 matou mais de 654 mil pessoas. No mundo, 6 milhões perderam a vida. E, embora a vacinação esteja avançada por aqui e em muitos países, especialistas e a própria OMS alertam ainda ser cedo para decretar seu fim.

"É difícil prever surgimento de novas variantes", afirma o professor de Infectologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz, Julio Croda.

O servidor da Anvisa que interrompeu o clássico dos gramados relembra, seis meses depois, da pressão que sofreu na ocasião, mas diz que se sentiu seguro por estar amparado na lei. Discreto, Yunes brinca que, como disse Andy Warhol, todos têm seus 15 minutos de fama e ele teve os dele. 

"Já sabíamos que o ambiente não seria favorável. Afinal de contas, estávamos lidando com um evento de grandes proporções. Então, há uma série de coisas envolvidas, econômicas e sociais. O que me levou à frente é muito simples. Primeiro, eu sou cidadão brasileiro, tenho uma Constituição que diz que todos são iguais perante a lei. Estava atuando dentro da legalidade. A minha missão era fazer a lei ser cumprida. Quando eu tenho a legalidade, missão dada é missão cumprida", diz Yunes.

Atuando na área de aeroportos da Anvisa, o servidor diariamente fiscaliza viajantes que chegam ao Brasil. Nos dois últimos anos, a tarefa ganhou contornos mais dramáticos e Yunes foi mais um dos brasileiros que tiveram a rotina transformada no combate ao coronavírus. No exercício da função, chegou a ficar oito meses longe da família com medo de contaminá-los devido à sua frequente exposição à doença.

"Futebol não é o meu esporte favorito. Eu sou um cara que gosta de praticar esportes radicais. Eu faço trekking, vou ao deserto, o que acho muito legal.  No dia (da interrupção do jogo) tive que ouvir (reclamação) das minhas filhas que gostam de futebol. Teve um colega que falou: "Poxa, nós estávamos com a cerveja aberta", brinca. "Mas depois todo mundo entendeu. É uma situação que a gente não poderia permitir de forma nenhuma".

Apesar do risco diário ao qual é submetido na fiscalização de aeroportos, Yunes não teve Covid-19 e participa como voluntário em estudo realizado pela Unicamp para analisar pessoas com alta exposição ao vírus que não foram contaminadas. Mesmo diante de indicadores melhores e perspectivas de saída da pandemia, o fiscal, que já atuou em outras emergências de saúde pública, como a pandemia de H1N1, se orgulha do trabalho da Anvisa na aprovação de vacinas.

"Uma coisa que aprendi é que, para proteger as pessoas que eu amo, eu tenho que acolher todos, servir a todos. Como disse o diretor da OMS Tedros Adhanom: só vamos estar seguros quando todos estiverem seguros. Aquele era um dia de plantão normal. Quando minha chefe me ligou e comunicou do fato, eu estava a caminho de almoçar e nem almocei", lembra Yunes.

A missão cumprida com êxito pelo servidor lhe rendeu, antes mesmo de deixar o estádio em São Paulo, o título nas redes sociais de "craque do jogo" ou "Lineu da vida real", em referência ao personagem Lineu Silva, o incorruptível fiscal da vigilância sanitária interpretado por Marco Nanini no seriado "A Grande Família". O apelido não foi infundado.

"Depois que saí do campo, colegas de outros órgãos me deram parabéns. Foi quando um deles chegou para mim e disse: "olha só, já fizeram meme". Quando o pessoal me comparou com o Lineu, eu ri, porque não é uma coisa nova. Faz anos que muitos colegas me comparam com o Lineu. Eu tive que aguentar muitos colegas falando "finalmente isso se revelou", conta.

Apesar de ver o trabalho publicamente reconhecido, Yunes reluta em enxergar o caso como um divisor de águas na sua carreira de servidor e prefere seguir cumprindo suas tarefas com discrição: "Sair do anonimato é incômodo. Eu realmente prefiro ter a minha privacidade".

"Alívio" é o que a biomédica Elisa Boccia, de 56 anos, diz ter sentido quando ajudou no desembarque no Brasil dos primeiros lotes da vacina CoronaVac produzidas pelo laboratório Sinovac, da China. Chefe do posto da Anvisa no aeroporto de Guarulhos, nestes dois anos ela  atuou diretamente no desembaraço de produtos essenciais no combate à pandemia que chegavam no país.

"Quando chegaram as primeiras doses, eu pensei "finalmente a gente vai conseguir sair dessa situação". Saber que fizemos parte desse processo e da história do Brasil é motivo de orgulho. Eu estava na pista quando a carga desceu, fiquei emocionada, foi uma sensação de alívio. Meus olhos marejaram e pensei: "vamos conseguir sair dessa", lembra a servidora da Anvisa.

Apesar da alegria em receber os imunizantes, a servidora conta que alguns dos momentos mais delicados de sua carreira foram vivenciados diariamente no aeroporto durante o controle de entrada de passageiros, quando muitas vezes teve de negar o ingresso de uma pessoa que precisava entrar no Brasil.

"Tivemos situações de viajantes chegando para visitar o pai que estava internado em condição de saúde crítica, que foi chamado às pressas para se despedir e chegou aqui sem a documentação necessária para entrar e tivemos de negar a entrada.  A gente também é mãe, filha, neta. A gente precisou se preparar psicologicamente para poder executar essa ação", relata.

A responsabilidade de tomar uma decisão determinante na vida de outra pessoa deixou marcas até mesmo na personalidade da servidora: "Muita gente fala que eu estou com o coração peludo e fiquei mais dura. Durante a pandemia, tive que assumir posições e responder de uma forma mais enfática que não faria em outras épocas. Aprendi muito sobre relações humanas".

Voltar para casa após expedientes extensos de exposição potencial ao vírus, quando ainda nem havia vacina e o país explodia de casos, mortes e colapso em hospitais, era outro momento de angústia para Elisa:

"A parte mais difícil era saber que eu ia exercer minha atividade e voltar para a casa. A cada dia que eu chegava em casa estava colocando em quarentena meu marido e meus filhos. A sensação de ser vetor de uma doença foi muito angustiante".

Mesmo com a experiência acumulada nestes dois anos de pandemia, o cenário segue desafiador para a saúde pública na avaliação de especialistas. O avanço da vacinação e a desaceleração dos números de hospitalização e de mortes colocam o Brasil num patamar de arrefecimento, mas que ainda inspira atenção diante da maior transmissibilidade da variante Ômicron.

"Nós estamos, agora, muito melhores do que estivemos em qualquer momento. Temos vacinas, que se provaram eficazes. Nós já temos tratamentos efetivos, mas ainda não no Brasil. Ficamos muito tempo brigando e perdendo tempo com medicamentos ineficazes (como a cloroquina)", analisa a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel. "A ciência conseguiu em um curto espaço de tempo respostas sobre a pandemia, respostas que nunca em outra fase da história conseguimos tão rápido".