Saúde

Úlceras e hipotermia: entenda os riscos à saúde dos refugiados ucranianos em meio ao frio e à guerra

Temperaturas chegam facilmente a 10ºC negativos nessa época do ano, podendo acarretar desde sintomas leves até quadros de perda de mobilidade e consciência, dificuldades cardiorrespiratórias e morte

Refugiados da Ucrânia esperando por ônibus, sob temperatura colegante, para sair do país em direção à Polônia - Louisa Gouliamaki / AFP

Quase 3 milhões de pessoas já fugiram da Ucrânia desde o início da invasão russa, há 20 dias. Além dos desdobramentos da guerra em si, o inverno rigoroso tem sido um dos principais agravantes para os refugiados: nesta época do ano, as temperaturas chegam facilmente a 10ºC negativos, e a exposição prolongada ao frio pode acarretar desde sintomas leves, como arrepios, tremores e dormência, até quadros de perda de mobilidade e consciência e dificuldades cardiorrespiratórias, que, em último caso, levam à morte, afirmam especialistas.

"O frio representa um dos maiores riscos à saúde dos refugiados ucranianos, muitas vezes obrigados a percorrer grandes distâncias a pé, sob temperaturas em torno de 5ºC a 10ºC negativos, até sob neve, como é comum nesta época nas regiões entre a Ucrânia e a Polônia", afirma Luiz César Nazário Scala, professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Na presença do vento, a sensação térmica do frio pode aumentar ainda em níveis inferiores a 5ºC.

Nesse contexto, os ucranianos e estrangeiros em fuga do país estão mais propícios à hipotermia, uma condição clínica em que a perda excede a produção de calor e a temperatura fica abaixo do normal. Os sintomas, segundo Scala, dependem da temperatura em que o corpo humano se encontra, sendo a hipotermia classificada em leve (temperatura corpórea entre 33°C e 35°C), moderada (entre 30°C e 33°C) ou grave (abaixo de 30ºC).

De acordo com o especialista, os casos leves incluem arrepios, tremores e dormência de mãos e pés, podendo haver também cansaço excessivo e lentidão nos movimentos. Já nos quadros moderados, os tremores são mais intensos, às vezes incontroláveis; as extremidades (mãos, pés, nariz e orelhas) começam a ficar arroxeadas e surgem dificuldades crescentes de falar e controlar os movimentos do corpo, seguido de rebaixamento do grau de consciência. Na fase mais grave, há descontrole dos membros inferiores e superiores, prejuízo da memória, redução acentuada de respiração e batimentos cardíacos, perda de consciência e morte por parada cardiorrespiratória.

Em condições de frio extremo também podem ocorrer lesões ulceradas nas superfícies da pele expostas ao frio, como rosto, nariz e orelhas, e necrose de extremidades sem proteção adequada, a exemplo dos pés e das mãos, completa Scala.

"São diversas as variantes que contam para medir o impacto do frio numa pessoa, como suas condições de saúde, idade, tipo de roupa que está usando e nível de proteção térmica. Mas estamos falando de uma situação de guerra, em que as pessoas saem de casa desesperadas, carregando o que conseguem para sobreviver", afirma Jean Ometto, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e especialista em mudanças climáticas. "Mesmo para quem nasceu num país frio e está mais acostumado a invernos rigorosos, é uma situação fora do padrão, que deixa qualquer um vulnerável".

Assim, é importante que a pessoa se mantenha hidratada e use calçados com solas grossas e agasalhos adequados para proteger o corpo, ressalta Scala. Também é importante utilizar cobertores ou mantas térmicas, ingerir bebidas quentes e retirar qualquer roupa molhada. O consumo de bebidas alcoólicas, porém, não é recomendado, pois, "apesar de em um primeiro momento aquecerem a pessoa, posteriormente interferem no sistema de termorregulação agravando o quadro de hipotermia", afirma. O especialista explica ainda que o reaquecimento precisa ser "harmônico", ou seja, de forma gradual.

"Assim que os sintomas aparecem, o ideal é que a pessoa busque abrigo e, se possível, uma forma de se aquecer", diz Ometto. "Mas se ela está fugindo de uma guerra, isso é muito difícil. Então ela acaba exposta a uma situação muito frágil, que pode levar até a morte".

Além do frio, no caso da Ucrânia, há ainda diversos fatores adversos a que estão expostas as pessoas: estresse psicológico, alimentação inadequada e esforço físico em percorrer grandes distâncias à pé, afirmam os especialistas. Crianças, idosos e portadores de doenças crônicas (cardíacas, pulmonares, diabetes insulino-dependentes, viciados em drogas, alcoólatras) são os mais vulneráveis nessas condições, diz Scala. Entre os cardíacos, o frio também pode precipitar quadros de infarto agudo do miocárdio e outras complicações. 

Com os voos comerciais da Ucrânia suspensos desde o início do conflito, as milhares de pessoas que tentam fugir do país todos os dias precisam fazê-lo por via terrestre, seja de carro, de trem ou mesmo a pé. Foi o que aconteceu com diversos atletas brasileiros que residiam em território ucraniano e tiveram que fugir às pressas, depois que foram registrados os primeiros bombardeios, em 24 de fevereiro.

"Foi um dos piores dias da minha vida. Andamos 70 km, andamos na rua com -4ºC, tivemos que fazer uma fogueira [para nos aquecer]. Foi um dia para esquecer", contou ao Globo o jogador de futebol Guilherme Smith, no final do mês passado, ao desembarcar no Brasil junto com mais dois colegas brasileiros.

A fuga de Murilo Koefender Maia, de 23 anos, não foi menos dramática. Ele e outros sete atletas e dois técnicos brasileiros de futebol chegaram a conseguir uma van que os levaria até a fronteira com a Polônia, mas foram deixados a cerca de 10 km do local combinado e tiveram que percorrer o restante do trajeto a pé, debaixo do frio congelante do inverno ucraniano.

"Ficamos na rua a noite inteira. Uma noite muito fria", disse o atleta na ocasião, após ficar mais de 30 horas acordado para conseguir entrar em solo polonês.