COVID-19

Por que a Covid não se espalhou pela África como era previsto? Cientistas também querem saber

Serra Leoa, uma nação de oito milhões de habitantes na costa da África Ocidental, parece uma terra inexplicavelmente poupada por uma praga que passou por cima de todo o mundo

RODGER BOSCH / AFP

Não há medo da Covid-19 em Kamakwie, cidade de Serra Leoa. O centro de resposta ao coronavírus do distrito registrou apenas 11 casos desde o início da pandemia e nenhuma morte. No hospital regional, as enfermarias estão lotadas — com pacientes com malária.

A porta da ala de isolamento da Covid está trancada e coberta de ervas daninhas. As pessoas se aglomeram para casamentos, partidas de futebol e shows, tudo isso sem máscara.

Serra Leoa, uma nação de oito milhões de habitantes na costa da África Ocidental, parece uma terra inexplicavelmente poupada por uma praga que passou por cima de todo o mundo. O que aconteceu — ou não aconteceu — aqui e em grande parte da África Subsaariana é um grande mistério da pandemia.

A baixa taxa de infecções por coronavírus, hospitalizações e mortes na África Ocidental e Central é foco de um debate que divide cientistas no continente e além. Os doentes ou mortos simplesmente não foram contados? Se a Covid de fato causou menos danos aqui, por que isso aconteceu?

Nos primeiros meses da pandemia, temia-se que a Covid pudesse destruir a África, dilacerando países com sistemas de saúde tão fracos quanto o de Serra Leoa, onde há apenas três médicos para cada 100 mil pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde.



A alta prevalência de malária, HIV, tuberculose e desnutrição foi vista como um gatilho para o desastre. Isso não aconteceu. A primeira onda do vírus que correu ao redor do mundo teve um impacto comparativamente mínimo lá. A variante Beta devastou a África do Sul, assim como a Delta e a Ômicron, mas grande parte do resto do continente não registrou números de mortes semelhantes.

Agora, novas pesquisas mostram que não há mais dúvidas sobre se a Covid se espalhou amplamente na África. Isso realmente aconteceu. Estudos que testaram amostras de sangue em busca de anticorpos para o SARS-CoV-2 afirmam que cerca de dois terços da população na maioria dos países subsaarianos realmente possui esses anticorpos. Como apenas 14% da população recebeu algum tipo de imunizante contra a Covid, os anticorpos são predominantemente da infecção.

Uma nova análise liderada pela OMS, ainda não revisada por pares, sintetizou pesquisas de todo o continente e descobriu que 65% dos africanos haviam sido infectados até o terceiro trimestre de 2021, taxa superior à de muitas partes do mundo. Apenas 4% haviam sido vacinados quando esses dados foram coletados.

Algumas especulações se concentraram na relativa juventude dos africanos. A idade média deles é de 19 anos, em comparação com 43 na Europa e 38 nos EUA. Quase dois terços da população na África Subsaariana têm menos de 25 anos e apenas 3% têm 65 anos ou mais.

Isso significa que muito menos pessoas, comparativamente, viveram o suficiente para desenvolver problemas de saúde (doenças cardiovasculares ou respiratórias crônicas, diabetes e câncer) que podem aumentar drasticamente o risco de doenças graves e morte por Covid.

Os jovens infectados pelo coronavírus costumam ser assintomáticos, o que pode explicar o baixo número de casos relatados.

Várias hipóteses foram levantadas. As altas temperaturas e o fato de que grande parte da vida é passada ao ar livre podem estar impedindo a propagação. Além disso, a baixa densidade populacional em muitas áreas, ou a infraestrutura de transporte público limitada podem influenciar.

Talvez a exposição a outros patógenos, incluindo o coronavírus e infecções mortais, como febre de lassa e ebola, tenha de alguma forma oferecido proteção. Mas desde que a Covid atingiu o Sul e o Sudeste da Ásia no ano passado, ficou mais difícil aceitar essas teorias.

Afinal, a população da Índia também é jovem ( média de 28 anos), e as temperaturas no país são relativamente altas. Os pesquisadores descobriram ainda que a variante Delta causou milhões de mortes na Índia, muito mais do que as 400 mil relatadas oficialmente.

E as taxas de infecção por malária e outros coronavírus são altas em lugares, como a Índia, que também registraram altas taxas de mortalidade por Covid.

Também há teoria de que as mortes por coronavírus na África, simplesmente, não são contadas. A maioria dos rastreadores globais da Covid, de fato, não registra casos em Serra Leoa porque os testes para o vírus são efetivamente inexistentes.

E sem testes, não há casos a relatar. Mas muitos cientistas que acompanham a pandemia na região discordam. Para eles, não é possível que centenas de milhares ou mesmo milhões de mortes tenham passado despercebidas.

De acordo com Austin Demby, ministro da Saúde de Serra Leoa, que é epidemiologista por formação, embora a vigilância sanitária seja fraca, os serra-leoneses têm a experiência recente e terrível do ebola, que matou 4 mil pessoas em 2014-16.

Desde então, os cidadãos estão em alerta para um agente infeccioso que pode estar matando pessoas em suas comunidades. Eles não continuariam a participar de eventos se esse fosse o caso.

Mas está claro que um grande número de pessoas não estava chegando ao hospital com problemas respiratórios, disse Salim Abdool Karim, que faz parte da força-tarefa dos Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças Covid.

Para ele, a população jovem é claramente um fator-chave, enquanto algumas pessoas mais velhas que morrem de derrames e outras causas induzidas por Covid não estão sendo identificadas como mortes por coronavírus. Muitos não chegam ao hospital e suas mortes não são registradas, ele disse. Todavia, outros não estão adoecendo com taxas vistas alhures, e isso é um mistério que permanece sem ser desvendado.