"A ciência brasileira não é inclusiva", diz primeira mulher eleita para presidir a ABC
A biomédica paulista Helena Nader, 74, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vai liderar a entidade pelos próximos três anos
A Academia Brasileira de Ciências (ABC) elegeu ontem pela primeira vez uma mulher como presidente, após 105 anos de existência. A biomédica paulista Helena Nader, 74, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vai liderar a entidade pelos próximos três anos a partir de maio, após ter sido escolhida para encabeçar a chapa única que foi eleita.
Assumindo o cargo em um momento delicado da ciência brasileira, com crônica escassez de verbas para o setor, Nader afirma que o problema da falta de estímulo a jovens pesquisadores é ainda pior no caso das mulheres.
"Durante a pandemia, a produção científica masculina aumentou, mas a das mulheres caiu. Com todo mundo dentro de casa, a mulher assumiu mais responsabilidades", diz a cientista, que promete colocar a ABC para lutar por uma ciência mais justa para as mulheres e para minorias raciais. Em entrevista ao Globo, Nader fala esta e outras preocupações atuais.
Como a senhora recebeu a notícia de sua eleição hoje?
Eu acabei de sair de uma aula da pós-graduação agora, onde eu recebi muitos parabéns. Eu deixei claro que esse parabéns tem que ser compartilhado. Eu não venho de família rica. Sou de família de classe média. Eu e minha irmã fomos a primeira geração de universitárias da família. Meus pais são imigrantes. Estudei em escola pública e universidade pública, e fiz Dante [Colégio Dante Alighieri] no colegial. Tive família, tive professores e tive estudantes que me ajudaram. Isso não é um privilégio? Eu tenho que compartilhar essa alegria. Já imaginou chegarmos a uma época em que não precisamos mais comemorar que uma mulher chegou lá?
A senhora é a primeira mulher a presidir a ABC. O que a academia pode fazer para combater o problema da desigualdade de gênero na ciência do Brasil?
A ABC já estava muito envolvida na igualdade de gênero. Neste ano entraram mais mulheres que homens na academia, pela meritocracia. Teve uma atitude do nosso presidente atual, Luiz Davidovich, de promover isso. A mulher hoje é maioria na universidade. Por que ela não chega nos postos mais altos? Em 105 anos, por que a Academia não teve presidentes mulheres antes? O problema não é só no Brasil. Na Academia Nacional de Ciências dos EUA (NAS), a primeira mulher presidente só veio a ser eleita agora, a Marcia McNutt. Algumas academias nacionais até hoje não tiveram mulheres na presidência.
Nós, mulheres, temos que lutar para promover a igualdade em todas as áreas. Os dados de produção científica durante a pandemia mostraram que, no Brasil e no resto do mundo, a produção masculina aumentou, mas a das mulheres caiu. Com todo mundo dentro de casa, a mulher assumiu mais responsabilidades, de novo. É claro que mulheres e homens são diferentes, mas o cuidar não é uma obrigação só da mulher. Deveria ser uma obrigação de casal.
A ciência brasileira ainda não é inclusiva, infelizmente. A população brasileira é miscigenada e tem um componente negro muito grande, mas temos muito poucos negros na ciência. Temos um longo caminho para percorrer, não só para a inclusão da mulher, mas para a inclusão da sociedade.
Há uma expectativa de que a senhora possa ajudar agora a combater esse problema?
Com certeza há uma expectativa por eu ser a primeira mulher, mas a chapa que foi eleita agora tem pessoas de todo o Brasil. Temos uma representatividade regional e temos diversidade de gênero e de especialidades. Estamos todos muito unidos para buscar a educação e a ciência como política de estado para o Brasil e o respeito aos direitos humanos.
A senhora chegou a enfretar episódios pessoais de machismo ou misoginia na sua carreira?
Na época que eu entrei na faculdade, no curso de biomedicina da Escola Paulista de Medicina [atual Unifesp], a maioria dos estudantes era do sexo masculino. As mulheres estavam em menor proporção dentro da vida universitária de modo geral. E era bem mais complicado, sim, uma mulher conseguir mostrar que era capaz.
Eu tive um professor, não vou contar quem era, que nas férias dava descanso para os meninos e tarefas [de reforço] para as meninas. As mulheres não eram olhadas como aquelas que poderiam dar certo. Eu passei por outras coisas, também, mas sempre tive muito apoio, o que fez muita diferença.
Muito desse apoio veio do meu companheiro [o cientista Carl Peter von Dietrich], que faleceu há 15 anos. Ele tinha sido meu orientador, e anos depois a gente acabou ficando junto. A gente trabalhava na mesma área, e ele mesmo me dizia: "Muita gente não imagina do que você é capaz porque as pessoas olham primeiro para mim."
Ele foi mesmo um grande cientista, mas eu respondia para ele: "Eu não estou nem um pouco preocupada com essas pessoas, porque eu sei me ver."
Eu tenho certeza que teve gente que pensou: "O que vai ser dela agora que ele morreu?". Ainda existe muito disso, infelizmente.
A senhora já presidiu a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). O que muda agora com sua eleição para a ABC, que é um grupo mais restrito de cientistas?
A ABC e a SBPC são complementares. A SBPC é uma oportunidade única de conviver com diferentes áreas do conhecimento, nos congressos e em tudo o que ela promove. A ABC é mais voltada para um grupo menor. A ideia é que os integrantes da ABC devam ter competências peculiares e sejam líderes de suas áreas específicas do conhecimento, mas isso não quer dizer que os cientistas fora da ABC não sejam bons.
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O Brasil precisa das duas entidades e elas sempre trabalharam muito juntas. Trabalhamos juntos na discussão sobre o novo código florestal, sobre a lei de acesso à biodiversidade, sobre marco legal de ciência e tecnologia e várias outras ocasiões.
Como a senhora vê a situação dos jovens cientistas hoje?
Me preocupa hoje que a pós-graduação e a ciência não estejam merecendo a demanda que tinham alguns anos atrás. Eu creio que a explicação para isso seja o valor que é pago em uma bolsa de pós, que está há oito anos sem correção. Ninguém sobrevive só com bolsa em nenhuma capital do Brasil. Caiu muito a procura pela carreira científica, em todos os recantos do país. Estamos deixando de formar novas pessoas e vamos sentir o efeito daqui a cinco ou seis anos.
Vocês estão conversando com os candidados para presidente para ajudar a desenhar a política científica do próximo governo?
Temos grupos de trabalho em diferentes áreas do conhecimento fazendo isso. Depois vamos discutir com a SBPC para talvez sair um documento conjunto, não só para os presidenciáveis, mas também para candidatos a governador, deputado e senador. Quando ocorrem cortes na ciência, algumas vezes é o Congresso que não libera, em outras é o Executivo.
No caso atual, nos últimos três anos, vemos que o Ministério da Economia não enxergou a ciência e a educação como importantes. Hoje a sociedade entendeu o valor da ciência, mas não ela toda. Tem 30% ainda que não quiseram tomar vacina. Por que negar o avanço da medicina nos dias de hoje? Por que promover medicações para as quais não existe evidência de que funcione?
Uma coisa que vejo muito preocupante no Brasil é que o Brasil não tem política de estado para ciência, com visão de longo prazo. Nos Estados Unidos, a política de estado funciona.
Sua área de pesquisa, a biomedicina, ganhou os holofotes com a pandemia. A senhora avalia que ela atendeu às expectativas?
A área biomédica no Brasil, que começou há 100 anos com Butantã e Fiocruz, foi essencial agora. E o que se conseguiu fazer na pandemia foi quase sem recurso. Imagina se a gente tivesse recursos? Imagina se tivessem acreditado que era importante investir?
As vacinas de Covid-19 não foram desenvolvidas só em um ano. As tecnologias para elas já existiam, e ainda assim os governos de EUA, Alemanha e Reino Unido investiram bilhões de dólares. Ciência é produto de longo prazo, e é isso que o nosso político não enxerga. Ele concede a verba hoje e quer o resultado ontem. A ciência leva tempo, mas a população viu agora o valor da ciência.