Futebol

Copa do Mundo: Como o enriquecimento europeu reduziu o número de 'bobos' no futebol

Com jogadores de todo o planeta atuando nas principais ligas, esperar por grupo só com seleções frágeis para o Brasil virou utopia

Copa do Mundo de 2022 será realizada no Catar - Karim Jaafar/AFP

Todo sorteio de Copa , como o que será realizado hoje, a partir das 13h (de Brasília), é igual. Com exceção de uma minoria que gosta de fortes emoções logo de cara, os torcedores cruzam os dedos e esperam que as bolinhas com os adversários mais frágeis possíveis caiam no grupo do Brasil. Querem ver a seleção empilhar goleadas e acumular confiança para a fase de mata-mata. Mas, no futebol atual, este cenário dos sonhos ainda é possível?

Um das frases mais populares é a de que “não há mais bobos no futebol”. Entre seleções, ela deixou de ser um mero clichê para resumir o momento atual. A nova configuração econômica do esporte — com os milionários clubes europeus captando os principais talentos dos países periféricos — praticamente acabou com os abismos entre continentes. Seja da Oceania, do Oriente Médio ou da América Central, os destaques das equipes nacionais atuam (ou já atuaram) no centro do mundo da bola: a Europa.

Isso significa que mesmo em seleções teoricamente mais fracas, os atletas estão familiarizados às ideias táticas que serão utilizadas no Mundial e sabem o que é jogar contra (e ao lado de) os principais craques. A ideia do participante ingênuo, que será facilmente envolvido pelo futebol insinuante de Neymar e Vini Jr. ficou para trás.

— A gente precisa passar a olhar o futebol de seleções de uma maneira diferente. Especialmente quando o Brasil tem dificuldades com uma Suíça, uma República Tcheca, uma Costa Rica... A globalização é um fenômeno que a sociedade inteira vive. O futebol não passaria imune. Ela fez concentrar os melhores jogadores num número pequeno de times ou de ligas. O resultado: o futebol de clubes virou um abismo. Ao mesmo tempo, o de seleções é o oposto. Porque os melhores de cada uma estão competindo e se preparando nas melhores estruturas do mundo. Então acabou o ingênuo. Todo mundo têm um padrão mínimo. As distâncias se encurtaram  — analisa o colunista do GLOBO Carlos Eduardo Mansur.

— E hoje as seleções treinam muito menos, os jogadores passam um longo tempo sem se encontrar. Então isso vai fazendo com que este mundo seja inverso dos clubes. É o da imprevisibilidade, do acirramento das dificuldades para vencer qualquer adversário.

Algumas participações são lembradas até hoje e ajudam a alimentar este imaginário em torno da fase de grupos. Como a de El Salvador, na Espanha-1982. Os salvadorenhos despediram-se sem somar pontos e lembrados por terem sofrido a maior goleada da história do torneio: 10 a 1 para a Hungria.

Mas a presença do Zaire (hoje República Democrática do Congo) na Alemanha-1974 talvez seja a mais simbólica de todas. O time sofreu três derrotas (uma delas por 9 a 0 para a Iugoslávia) e ainda ficou marcado pelo momento em Mwepu Llunga chutou a bola quando o Brasil se preparava para cobrar uma falta. A fragilidade técnica da equipe e a falta de conhecimento sobre os bastidores daquela seleção (o gesto teria sido um ato de protesto) disseminaram a ideia de que os africanos desconheciam as regras do esporte.

Hoje, as seleções do continente são o maior exemplo de como a periferia do futebol evoluiu graças a este intercâmbio com a Europa. O fluxo migratório que todo ano leva milhares de africanos para países como França, Bélgica e Alemanha permitiu que equipes como a de Camarões e Marrocos passassem a ser formadas majoritariamente por jogadores das principais ligas do planeta.

Senegal é o melhor exemplo. Considerá-lo zebra na Copa do Catar é ignorar o talento de seus jogadores. Do goleiro Édouard Mendy (o melhor do mundo na posição), do Chelsea, ao camisa 10 Sadio Mané, do Liverpool, todos os 11 que superaram o Egito na última terça (29) e garantiram a vaga no Mundial atuam na Europa.

A maioria dos atletas de Gana, Camarões e Marrocos também atua no Velho Continente. Quando não nos gigantes do futebol, como o Bayern de Munique (do atacante camaronense Choupo-Moting) e o PSG (do lateral marroquino Hakimi), estão nos rivais destes times.

Este processo já chegou também na Ásia e na Concacaf, regiões consideradas quarta e quinta forças do esporte. Os principais exemplos são o atacante Son, maior nome da Coreia do Sul e que joga pelo Tottenham; e o lateral Alphonso Davies, do Bayern de Munique e da seleção canadense. Mas eles não são casos isolados. Enquanto os Estados Unidos contam com o meia Pulisic, do Chelsea; o Japão tem o ponta Minamino, do Liverpool. Até o Irã tem seu principal jogador atuando na Europa: o atacante Mehdi Taremi, do Porto.

As seleções cercadas por uma bolha praticamente não existem mais. Ao menos não na Copa do Mundo. As exceções são o Catar e a Arábia Saudita, que não contam com nenhum atleta atuando em outro continente. Por isso, despontam como maiores candidatos a “saco de pancadas”. Ainda assim, não estão fechados para as informações e as ideias que vem de fora. Tanto que são treinados por europeus. De toda forma, apenas os sauditas, no pote 4, podem parar no grupo do Brasil. Por serem o país sede, os anfitriões serão cabeças de chave no sorteio.

Mesmo neste cenário em que não há mais os chamados bobos do futebol, algumas bolinhas poderiam proporcionar uma fase de grupos mais tranquila para Tite. Entre as seleções já classificadas e aquelas que disputam a repescagem e podem entrar no grupo do Brasil, Tunísia, Costa Rica e Nova Zelândia são as que menos possuem peças no futebol europeu, além da já citada Arábia Saudita. Os africanos estão no pote 3. As demais, no 4. A chance de caírem na mesma chave que Neymar & Cia é remota. Mas não custa acreditar.