Arquivada a investigação sobre crianças ianomâmi supostamente sugadas por draga de garimpo

Mesmo com aumento da violência, poucos inquéritos avançam

Terra indígena dos Yanomami, local de garimpo ilegal - Divulgação

Em outubro do ano passado, lideranças indígenas denunciaram que duas crianças ianomâmi, de 4 e 5 anos, teriam morrido após serem sugadas por uma draga de garimpo ilegal no rio Parima, na comunidade Makuxi-Iano, no estado do Roraima.

As investigações oficiais, porém, concluíram que não houve interferência de maquinário no acidente, e o inquérito foi arquivado pelo Ministério Público Federal nessa semana.

Apesar do aumento dos conflitos e de mortes dentro do Território Indígena (TI) Ianomâmi, poucas são as apurações que conseguem ser concluídas. O difícil aceso aos locais das denúncias e a barreira do idioma costumam ser obstáculos apontados, mas pesquisadores também reclamam da deslegitimação dos relatos dos indígenas.

No caso do rio Parima, a investigação da Polícia Federal durou um mês, até novembro passado. Segundo a polícia, os meninos, que eram primos, teriam escorregado de barcos improvisados enquanto brincavam no rio, e se afogaram. O inquérito ainda apontou que não haveria maquinário de garimpo naquelas proximidades. Já os indígenas denunciaram que a draga ficava na beira do rio, e que as crianças teriam "engatado" em algum objeto, o que as fez serem lançadas na água.

Depois do trabalho da PF, as informações foram remetidas ao MPF, que complementou o inquérito com novos depoimentos e diligências. A Procuradoria Regional de Roraima informou ao GLOBO que, apesar de não descartar a presença de máquinas do garimpo na comunidade, os depoimentos dos próprios indígenas teriam detalhado uma mesma história, de que as crianças foram levadas pela correnteza, sem o apontamento da influência da draga como causa. O inquérito foi movido para arquivamento nessa semana.

Os bombeiros, que participaram do resgate do corpo do menino de 4 anos — o primeiro corpo já havia sido encontrado pelos próprios indígenas — teriam dito, segundo o MPF, que não havia escoriações na criança. Já o presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomâmi e Ye'kuanna (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomâmi, que participou do resgate junto aos bombeiros disse que viu lesões semelhantes a arranhões nas costas do menino. Ele não conseguiu fazer fotos porque o corpo foi rapidamente guardado e entregue a mãe.

— Não sei se os bombeiros viram, porque pegamos (o corpo) e colocamos na sacola — afirmou Hekurari, que foi porta-voz das denúncias sobre o caso, mas disse não se surpreender com a falta de conclusões nessas ocorrências. — A gente já espera tudo isso, as investigações não são seguidas. Houve várias outras mortes na região, e nós não sabemos como estão os inquéritos, a gente não fica sabendo.

A PF e o MPF não informaram quantos inquéritos estão em curso para apuração de denúncias de mortes e ataques violentos contra os ianomami. Segundo a Procuradoria Regional de Roraima, um procedimento foi recentemente aberto, para investigar denúncia de exploração sexual infantil após a divulgação do relatório "Yanomâmi sob ataque", da Hutukara Associação, que revelou o aumento da área degradada pelo garimpo dentro do TI - 46% em 2021 - e compilou diversas denúncias de mortes violentas, estupros, além de aumento exponencial de casos de malária, como outra consequência das invasões.

Outra investigação em aberto é do caso da semana passada, em que os indígenas denunciaram que uma criança de 12 anos foi morta após ser estuprada por garimpeiros na comunidade do Aracaçá, onde também uma criança de 3 anos teria morrido afogada. Após as ocorrências, a comunidade foi esvaziada e 24 indígenas que viviam local estão desaparecidos. Segundo Junior Hekurari, eles estariam em fuga, por medo dos garimpeiros.

Mas, após uma primeira diligência no local, a PF chegou a afirmar que não haveria indícios de crime. Professor de antropologia do Museu Nacional / UFRJ, Carlos Fausto se preocupa com o que ele chama de uma "indústria de deslegitimação dos relatos indígenas".

— Uma vez que os indígenas conseguem noticiar um fato, surge uma indústria, uma reação, para deslegitimar esse fato e colocar dúvidas sobre a concretude dos episódios. Foi o que aconteceu nas investigações de semana passada. Além da PF afirmar que não viu indícios de crime, na internet já circula um vídeo de garimpeiros desmentindo estupro, com quatro ianomâmi confirmando, constrangidos. Já há uma cultura do terror posta na região — explica o pesquisador. — Esse tipo de situação não é nova na Amazônia, e nos remete ao genocídio do início do século XX promovido pelos barões de borracha. Mesmo com testemunhas oculares dos assassinatos, ninguém queria acreditar. Talvez por não se identificarem.

O antropólogo lembra, ainda, que poucos homicídios no Brasil, mesmo na área urbana, são elucidados. No caso de crimes em áreas indígenas, o contexto é ainda pior, com dificuldades logísticas, participação de facções criminosas robustas e ausência de vontade política. Ele afirma também que anos eleitorais costumam ser marcados por aumento de conflitos, já que políticos locais costumam expandir as fronteiras extrativistas

— Isso só vai piorar até as eleições. Temos uma facção política que fundamenta sua relação com a sociedade através do ódio e os indígenas são depositórios desse ódio. Isso coloca a Amazonas em chamas, o que não é bom para ninguém. Enquanto isso, iniciativas do Executivo e do Legislativo tentam desmontar os direitos indígenas em várias frentes, na estratégia de "passar a boiada". Temos uma regressão civilizacional, vai além de problema criminal. É preciso uma reação forte e uma estratégia nacional.

Pesquisadores vêm pedindo urgência na articulação e coordenação entre as instâncias competentes, para que investigações contem, por exemplo, com antropólogos e tradutores. Mas, Junior Hekurari lembra, por exemplo, que o quadro de funcionário indigenistas que a Funai contava há cerca de 20 anos não foi renovado, após as aposentadorias, e hoje a fundação pouco atua no apoio a essas denúncias. Para as traduções durante as apurações dentro do TI Ianomâmi, ele próprio costuma ser o principal tradutor e porta-voz.

Antropóloga integrante da Rede Pró Yanomami e Ye'kwana, Valeria Vega afirmou que é preciso, primeiro, ter vontade política. Ela, que está fazendo doutorado pela UFRJ, com uma pesquisa sobre restituição de coleções fotográficas sobre os ianomâmi, não consegue entrar no território desde 2020, primeiro por causa da pandemia e depois por causa da onda de violência.

— Há vários motivos para essa situação, como o aumento do preço de ouro, a fragilização de políticas ambientais, a participação de facções criminosas e o próprio incentivo do atual governo, que se manifesta a favor do garimpo. Os relatos dos ianomami hoje são do retorno desse pesadelo garimpeiro dos anos 80, agora com características que antes não existiam, como as inovações tecnológicas que permitem maior comunicação e locomoção rápida aos garimpeiros. Além da introdução de armas de fogo e dos abusos sexuais — afirma Vega.