Cultura

A voz por trás da cena: conheça o universo da profissão de dublador

A editoria Cultura+ entrevistou profissionais da área para entender a origem e os desafios do ofício da dublagem

Microfone - Agência Educa Mais Brasil

Identificar filmes, séries e desenhos apenas pelo jeito de falar do personagem não costuma ser tarefa tão difícil para os fãs dessas produções. E a explicação para isso está em um recurso bastante desenvolvido no Brasil: a dublagem e a voz original - ferramentas amplamente utilizadas pela indústria cinematográfica que são componentes fundamentais da dramaturgia de um bom produto audiovisual.

A editoria Cultura+ entrevistou profissionais da área para entender a origem, as possibilidades e os desafios da profissão de dublador. Engana-se quem pensa que o processo da dublagem é moleza. É preciso ter muita preparação para que os telespectadores possam entender a trama e suas referências, através de um trabalho que envolve não apenas técnica vocal e de locução, mas também um trabalho de atuação. 

A rotina de um dublador
Wendel Bezerra, empresário de dublagem e dublador responsável por dar voz a personagens que atravessaram gerações, como Bob Esponja e Goku, de Dragon Ball Z, há 40 anos atuando nesse ramo, fala com a autoridade sobre os desafios do seu trabalho, que se divide em várias etapas, que vão desde tradução, cortes à escolha dos dubladores. 

“Não tem preparação prévia para gravar. O dublador descobre e vai dublando na hora, é assistindo e gravando, tudo depende da intuição, percepção, sensibilidade e foco do ator... Quando gravamos só vemos as partes que o nosso personagem fala, não vemos outras cenas, nem nada’’, comenta o dublador, que estará neste sábado (14) na Power-Kon Recife, feira geek que acontece no Camará Shopping, em Camaragibe

Outro desafio, segundo Wendel, é a rotina agitada. “O dublador que está inserido no mercado trabalha de segunda a sexta, e até no sábado. É muito comum um dublador começar a trabalhar às 8h da manhã e terminar às 22h, porque existem vários estúdios, o mercado é intenso, e aquele que se destaca pela sua interpretação, produtividade e sincronismo tem a agenda cheia. E tem muitos que se dividem como diretor e dublador’’, destaca. 

 

Wendel Bezerra ficou conhecido por dublar personagens marcantes como Bob Esponja e Goku, do Dragon Ball Z

A dublagem chega a Pernambuco
Com o avanço do cinema de animação no Brasil, cresceu também a demanda por profissionais qualificados. Para atender a esse mercado, a Escola Viu Cine de Criatividade, ligada a um estúdio pernambucano de animação, passou a oferecer um curso - pioneiro no Estado - de dublagem e voz original, que já está entrando na quarta turma da formação.

O paulista radicado em Recife Marcello Trigo é o idealizador da formação que tem revelado novos profissionais em Pernambuco. Sua trajetória até se tornar dublador, ator, cineasta e locutor publicitário aponta para os caminhos desse ofício. Aos 19 anos, foi ao Rio de Janeiro tentar ser ator de televisão. Lá fez curso no Teatro Tablado com Maria Clara Machado e estudou dublagem com Waldir Sant’anna, o dublador do Homer Simpson. Através desse curso, conseguiu acesso a algumas casas de dublagem, entre elas a Som de Vera Cruz, a Delart e a Hebert Richers, fazendo pequenas pontas e figuração em dublagem. 

Quando voltou para Santa Catarina aproveitou os conhecimentos como dublador para se tornar locutor publicitário. Marcello veio ao Recife por ocasião de uma campanha política, a convite de uma produtora de áudio, se apaixonou pela cidade e por sua atual esposa. Cursou Faculdade de Cinema na Aeso Barros Melo, onde conheceu Ullysses Brandão, cineasta, produtor e dono da Viu Cine, que lhe convidou para dublar um dos desenhos animados produzidos pela produtora, o filme “Pedrinho e a chuteira da Sorte”. Depois resolveram montar um curso de dublagem e voz original. Por volta de 2015, Marcello começou a dar alguns workshops e depois houve uma necessidade de expandir essas aulas para que houvesse um aprofundamento. Hoje, as turmas têm duração de seis meses, com encontros uma vez por semana.

“Me especializei fazendo cursos de dublagem com grandes dubladores, entre eles a Mabel César, Waldyr Sant’anna e Cláudio Galvan (dublador do Pato Donald). Procurei me especializar o máximo possível para trazer conhecimentos para meus alunos aqui do Recife. Eu passo as noções para que eles possam montar seus home studios,sobre microfones e acústica, para que eles possam trabalhar via internet e gravar editando a si mesmo usando um programa de edição simples e gratuito”, conta Marcello. 

O dublador e professor de dublagem Marcello Trigo está formando dubladores em curso pioneiro em Pernambuco

Pernambucanos no mercado da dublagem
O radialista, jornalista e locutor publicitário André Almeida participou de uma das turmas de Marcello Trigo. “Sempre tive admiração pelo mercado da dublagem. Estudei teatro para tal, pois a dublagem é um desdobramento da profissão do ator”, conta. Após concluir a formação para obter o DRT, registro profissional de ator, ele fez o curso na Viu Cine e hoje já atua no mercado dublando filmes, séries, novelas e documentários”, conta. 

“O saudoso Chico Anisio disse que o trabalho do dublador como desdobramento do ator é um dos maiores desafios à profissão. O ator já pega a imagem pronta e tem que ouvindo outro idioma colocar sua voz no seu idioma trazendo junto a isso o sincronismo labial e a interpretação. Você meio que acaba decorando o script, pois é olho na tela e olho no lábio e expressão corporal ao mesmo tempo”, explica André, que já dublou 57 filmes, 16 séries, oito novelas e 5 documentários. 

“Nós não temos tempo para leitura prévia devido a demanda. Então tem que ter uma boa leitura e uma boa interpretação do texto. Falar e promover reacts não é algo tão simples. O primeiro passo: estudar teatro, pois é necessário ser ator para dublar. Segundo, buscar um curso para aprender o caminho a ser trilhado para se tornar um bom profissional como ator de voz”, orienta.

O jornalista e locutor publicitário André Almeida fez o curso de dublagem e hoje atua na área

Caminhos para se tornar dublador
A dublagem brasileira ganhou destaque mundial e o mercado cresceu devido não só a preferência do público por assistir em português, mas também pela expansão e surgimento de streamings. “Hoje em torno de 80% das pessoas que consomem entretenimento em streaming, televisão, cinema, preferem a programação dublada. É um mercado que tem seu grande polo no Rio de Janeiro e São Paulo, mas através desse crescimento existem estúdios em outros estados que já oferecem o serviço’’, conta Wendel Bezerra. 

O diretor de dublagem também fala que existem métodos para uma boa dublagem, para que o público tenha uma boa experiência audiovisual. “Para ser dublador é fundamental ser ator/atriz, porque você não está narrando, locutando, você está transferindo características emocionais de um personagem.  Todo mundo já teve a experiência de assistir um filme muito mal dublado, onde a interpretação tá ruim, por isso é importante fazer um faculdade de artes cênicas’’, sugere Wendell, dublador do ator Robert Pattison há 15 anos.

Marcello Trigo considera uma conquista a obrigatoriedade do registro de DRT de ator para a profissão de dublador e explica como é possível obter esse registro. “Para tirar o DRT, a pessoa tem que se dirigir ao Sated da sua região e cada um desses órgãos vai exigir uma carga horária de ator para emitir esse número, seja por meio de cursos de teatro ou apresentações que já comprovou participar”, detalha.

“Aprender a técnica e entrar na alma do personagem é algo que leva tempo. E além disso, o dublador precisa peregrinar nas casas de dublagem mostrando seu trabalho. E agora com home studio isso está sendo feito online, o que torna mais difícil”, pondera Marcello.

Com a quantidade crescente de streamings, desenhos, documentários, reality show e novelas surgindo a cada dia, é impossível que um gargalo pequeno aguente toda essa safra sem se armar com muitos profissionais, pois tem uma demanda muito grande. E essa alta demanda pode ser a oportunidade para quem deseja ingressar nesse campo profissional.

 “Os grandes atores de voz do Brasil estão concentrados no eixo Rio-São Paulo. Foram eles que inspiraram crianças do Brasil inteiro a quererem trabalhar com isso. Então, hoje se você não mora em São Paulo ou no Rio de Janeiro, não precisa necessariamente viajar até lá para cumprir o seu sonho. Basta escolher um curso que se adequa ao que você precisa, ter o seu homestudio, tirar o seu DRT e aí você consegue trabalhar a distância. Para quem está sonhando com essa profissão, persistência, insistência e muita dedicação são o segredo do sucesso”, conclui Trigo.

Home studio: a nova revolução do audiovisual
A indústria do cinema, ao longo do tempo, passou por grandes transformações. Desde a transição dos primeiros projetores de filmes até o U-Matic, formato de videocassete analógico, até a transição para o cinema digital e as ferramentas de edição como o Protools, em cada uma dessas transições, o mercado levou tempo para se adaptar. 

Depois que a pandemia explodiu, os estúdios do Rio e São Paulo começaram a se abrir para home studio. Antes, esse formato era proibido para evitar a pirataria ou vazamento de filmes inéditos ao público, embora já houvesse homestudio no mercado de publicidade. Hoje, já existe um sistema  em que as produtoras mandam um link de souce conect, em que o dublador assiste ao filme em streaming. Através desse link vê-se o texto e o vídeo e nada chega ao computador. Se o dublador tentar copiar, ele bloqueia. Esse sistema tem possibilitado que profissionais do mundo todo sejam contratados remotamente.

Dublagem x voz original 
O que diferencia a dublagem da voz original é que a primeira geralmente serve para transpor o idioma da peça audiovisual, ou seja, já existe a referência do áudio original e o dublador vai colocar a voz em cima desse texto pré-existente, seguindo a interpretação, entonação daquele personagem. Já na voz original, o profissional vai criar a própria referência para um personagem completamente novo, sendo a primeira pessoa a interpretar esse texto.

Mais recentemente, a indústria da dublagem passou a utilizar o recurso do star talent, que consiste em convidar personalidades famosas sem experiência em dublagem para alavancar o público das produções. Essa estratégia usa o prestígio daquela personalidade para dar mais visibilidade ao seu produto audiovisual. Alguns cases famosos de start talent foi o do apresentador Marcos Mion interpretando o personagem Buzz Lightyear, do Toy Story e Luciano Huck, na animação “Enrolados”.

Origem da dublagem
Quando o cinema começou a ser falado, a partir de 1926, os grandes produtores de filme dos Estados Unidos precisavam exportar seus produtos audiovisuais para o mundo todo. E colocar a legenda era um processo que tinha que ser feito na película, quadro a quadro, colocando a frase em cada frame. Por isso, a possibilidade de ter aquele filme em diversas línguas acabou se tornando uma necessidade, que foi criada por essa indústria a partir do início do século XX.

A primeira dublagem de animação feita no Brasil foi a do filme ‘Branca de Neve e os Sete anões’, da Disney, em 1938. Uma curiosidade é que quem interpretou a voz de Branca de Neve foi a diva do rádio Dalva de Oliveira. Infelizmente, o registro da gravação foi perdida em um incêndio nos estúdios Herbert Richers, anos mais tarde. Por sinal, Hebert, fundador da empresa pioneira no gênero no país e amigo pessoal de Walt Disney, é um personagem indispensável para contar sobre a história da dublagem no Brasil.

Cartaz e revista sobre a primeira dublagem de animação feita no Brasil, "Branca de Neve e os Sete Anões"; a diva Dalva de Oliveira dublou Branca de Neve


Na década de 40, ele fundou sua empresa, a Herbert Richers S.A.,inicialmente focada na distribuição de filmes. Richers também trabalhava como cinegrafista e produzia cine-jornais (notícias filmadas em películas, exibidas antes das sessões). Em 1953, Richers trabalhou como operador de câmera no filme Amei um Bicheiro (1953), na Atlântida Cinematográfica. Anos depois, ele produziria seu primeiro filme, Sai de Baixo (1956).

Um problema técnico com as filmagens comprometeu o áudio, e a fita precisou ser dublada. Ele então investiu em aparelhos de dublagens para salvar seu filme, e acabou descobrindo um grande nicho de negócios, vinda a ser um dos pioneiros dessa indústria no país. Um fato marcante na história do país ajudou a alavancar a profissão de dublador. 

Em 1962, o então presidente Jânio Quadros criou uma lei que obrigava toda produção estrangeira exibida na televisão a ser dublada. Disney então solicitou que a Tupi contratasse os estúdios de dublagem de Herbert Richers para fazer a "versão brasileira" da série. A lei criada pelo presidente da república, e o sucesso de Zorro, fizeram a fama do estúdio carioca. Richers tinha no elenco de dubladores nomes consagrados como Lima Duarte, Laura Cardoso, Selma Lopes e muitos outros.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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