AMÉRICA LATINA

Diretor de entidade internacional diz haver preocupação com discurso de 'fraude eleitoral antecipada

Segundo Daniel Zovatto, no México e na Colômbia também há questionamentos aos sistemas de votações

Daniel Zovatto - reprodução

O discurso de fraude eleitoral antecipada, que ganhou terreno com acusações sem provas do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o sistema eleitoral, não é motivo de preocupação apenas no Brasil.

Diretor para a América Latina e Caribe do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (Idea Internacional), Daniel Zovatto afirma que questionamentos que colocam em dúvida o processo de escolha dos representantes também são observados em outros países do continente, como México e Colômbia. No Brasil, contudo, Zovatto diz que a situação é acompanhada de perto pela comunidade internacional pelo peso que o país tem.

O diretor da entidade com sede na Suécia está no Brasil para uma palestra no TSE nesta terça-feira, onde falará sobre “Democracia e eleições na América Latina e os desafios das autoridades eleitorais”. Em entrevista ao GLOBO, Zovatto diz ver semelhanças entre o discurso de Bolsonaro e o adotado pelo presidente mexicano Andrés Manuel López-Obrador, com constantes ataques de que autoridade eleitoral local, o Instituto Nacional Eleitoral (INE). López-Obrador, representante da esquerda no país, tem proposto uma reforma com o argumento de que o órgão não é imparcial.

Na Colômbia, por sua vez, onde as eleições presidenciais mais acirradas dos últimos tempos serão realizadas no próximo dia 29, o alvo tem sido o sistema de contagem de votos. O professor ressalta que no país vizinho, de maneira diferente, os ataques ao sistema eleitoral não partem do presidente, como no Brasil, mas dos partidos que estão competindo. Nas eleições de março, quando o Legislativo foi eleito, todos os partidos levantaram supostas irregularidades na contagem de votos por parte de um órgão chamado "Cadastro Nacional", responsável pelo cômputo das cédulas. Uma recontagem dos votos chegou a ser cogitada, mas o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) descartou pedir a recontagem dos votos ao Senado.

— Não há maior fraude do que denunciar uma fraude inexistente. Isso que estamos observando com muita preocupação infelizmente não atinge só o Brasil. Mas o país nos chama a atenção especificamente pelo peso que representa: a maior democracia e economia da América Latina — disse o diretor do Idea, que há mais de 30 anos acompanha eleições mundo afora.

Por isso, Zovatto defende como "imprescindível" o posicionamento do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, para quem a Justiça Eleitoral está "aberta a ouvir, mas jamais se curvará a quem quer que seja".  Segundo o pesquisador, caso não se posicionassem, tanto a Corte eleitoral quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) estariam sendo omissos com as suas responsabilidades.

— Se o presidente decide seguir denunciando de maneira infundada temas que não existem, fraudes que não existem, ou seguir atacando o instrumento de votação ou a autoridade eleitoral, que goza de muita confiança dentro do país e de enorme prestígio na América Latina e a nível mundial, eu creio que em uma circunstância como essa tanto a presidência do TSE quanto a presidência do STF não têm outra opção que a de traçar linhas vermelhas muito claras — afirmou.

Para Zovatto, a inclusão das Forças Armadas em um discurso sobre a credibilidade do processo eleitoral, como vem sendo capitaneado por Bolsonaro, é inédita e "uma aberração" do ponto de vista das democracias em todo o mundo. Em abril, o presidente sugeriu uma contagem paralela de votos, controlada pelas Forças Armadas, com a instalação de um "cabo" ou "duto" para que os dados da votação sejam enviados para um computador específico dos militares.

— Isso é inédito. Não vimos isso em nenhum outro país da América Latina, e eu diria em nenhuma outra democracia do mundo. Que um presidente em um regime presidencial, onde o presidente é a instância mais alta, sugira que a garantia da integridade e da legitimidade do processo eleitoral, em vez de repousar nas instituições estabelecidas pela Constituição, como o TSE,  seja exercida pelas Forças Armadas, é uma aberração política. Querer usar as Forças Armadas nesta tarefa de auditor de última instância, isso não pode ser admitido. Esse deve ser outro limite estabelecido pelo TSE. É uma aberração política que deve ser rechaçada, como já está sendo — apontou.

Na avaliação do diretor do Idea, que também é membro do Conselho Consultivo para a América do Programa do Centro Internacional Woodrow Wilson, é preciso haver um debate sério sobre os limites da liberdade de expressão e o combate à desinformação. Ele explica que na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e na América Latina já se chegou ao entendimento de que, embora seja central para uma democracia de qualidade, a liberdade de expressão não deve ser tratada como ilimitada. Quando há abusos, defende, é legitimo colocar limites a esse exercício para precisamente evitar os efeitos negativos que podem ter campanhas de desinformação, de contaminação informativa, discursos de ódio, levando até a violência.

— E a violência não é um fantasma. Vimos o que aconteceu nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2020. Quando você quer se esconder, usar a liberdade de expressão como escudo indevido e ilegítimo para manipular discursos de ódio, discursos de divisão, discursos de violência, esse escudo de liberdade de expressão deve ser removido e a lei deve ser exercida em sua plenitude. Sem uma verdadeira liberdade de expressão não há democracia. Mas um exercício envenenado na liberdade de expressão, manipulado, acaba envenenando-a — afirmou.

O professor também lembra que os quatro principais índices que medem a qualidade das democracias ao redor do mundo — Economist Intelligence Unit, o projeto V-DEM, os relatórios da Freedom House e o relatório da International IDEA — registram uma piora no Brasil. Ele afirma que, de acordo com a The Economist, o Brasil só não caiu mais pelo trabalho que a Justiça, através do Supremo e do TSE, vem fazendo em limitar o poder do presidente e garantindo um processo eleitoral seguro.

— Estamos perdendo democracias e é neste sentido que há preocupação com o Brasil. Todos os índices estão registrando uma piora na qualidade da democracia no Brasil.  Por exemplo, o V-DEM coloca o Brasil como uma das democracias que sofreu a maior queda nos últimos dez anos. The Economist também baixou a pontuação do Brasil.  A melhor nota está em 'participação política e pluralismo', e a pior em 'funcionamento do governo'. É nesse ponto que o Brasil está perdendo — disse.