Arte em debate

Juliette artista? Especialistas refletem sobre o valor da arte no mainstream

"Não se trata apenas do elemento estético ou do valor da legitimação, se trata da celebrização", diz sociólogo

Juliette Freire teve seu valor artístico questionado nesta semana - Reprodução/TV Globo

Trocas de farpas entre celebridades nas redes sociais, ao longo da última semana, trouxeram de volta uma discussão que está longe de ter fim - o valor da arte e o que significa ser artista. A editoria Cultura+ consultou especialistas em arte, entretenimento e ciências humanas para contribuir com uma reflexão mais aprofundada sobre esse tema.

Ao repercutir um comentário de Juliette Freire no programa Altas Horas, a atriz Samantha Schmutz polemizou ao comentar (e depois apagar e pedir desculpas) uma publicação no Instagram: "Acho ótimo se posicionar. Mas ela é artista?". Na mesma semana, ao desafinar em uma apresentação musical ao vivo no programa Encontro, de Fátima Bernardes, o também ex-BBB Arthur Aguiar foi alvo de críticas nas redes sociais. Engrossando o debate, a influencer Jade Picon - outra ex-BBB - foi criticada por Anna Rita Cerqueira, Nina Tomsic e Ana Hikari e outras atrizes por ter sido escolhida para atuar em "Travessia", próxima novela de Glória Perez na Rede Globo.

Mas, afinal, o que é arte?
Arte é uma palavra que se origina do latim "ars", que significa "técnica" ou "habilidade". Denota a atividade humana ligada às manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada por meio de diversas linguagens, tais como arquitetura, desenho, escultura, pintura, literatura, música, dança, teatro e cinema, em suas variadas combinações. Mas o que define o valor artístico é uma combinação de fatores. "Os artistas, os curadores, os críticos, um conjunto de coisas, daí surge um determinado campo e espaço simbólico que vai ser considerado como artístico", explica Paulo Marcondes, sociólogo e professor do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da UFPE.

"Do ponto de vista histórico e sociológico, o que vai fundamentar e levar algo à condição de arte ou de artista traduz muito mais condições arbitrárias que se convencionam a dizer: 'isto é arte' ou 'aquilo não é arte'. A gente pode falar de arte dentro de um critério em que o capital simbólico e estético - para usar a expressão do sociólogo Pierre Bourdieu - é de alta conta", argumenta o sociólogo, que cita uma passagem do filólogo, filósofo e esteta norte-americano Nelson Goodman, em seu livro "Linguagens da arte", em que ele usa a expressão "quando há arte", em contraponto a "quando é arte", frase que considera equivocada. 

"A partir das convenções que configuram quando algo é arte, ou algo funcionando como arte, não adianta esbravejar e dizer isto não é arte, porque os pares, aqueles que legitimam algo como artístico estão caracterizando como arte. Independente de toda celeuma que o urinol de Marcel Duchamp (1887 - 1968) causou, no final das contas culminou com a legitimação do urinol como uma obra de arte ou como um acontecimento artístico", pontua Paulo Marcondes. O sociólogo cita o exemplo do artista italiano Piero Manzone (1922-1963), que influenciado pela ideia dos ready-mades de Duchamp, vendia latas com fezes ao preço do peso do ouro, em uma série que batizou de "Merda de artista".

 

"A Fonte" é um urinol de porcelana branco, uma das obras mais representativas do dadaísmo na França, criada em 1917, por Marcel Duchamp

Arte e mainstream
A discussão sobre o valor da arte dentro da indústria de massa é bastante antiga, bem antes do advento das redes sociais. "Hoje são os influenciadores digitais, mas já foram os modelos, os parentes, os amigos. E acho que essa turma com muito seguidor e relevância na internet tem um valor estratégico importante para o negócio como um todo: e se trouxerem uma audiência já distante dos meios tradicionais?", questiona o colunista de entretenimento e criador de conteúdo Chico Barney, que se notabilizou pelos comentários sobre reality shows e programas televisivos, sobretudo no Twitter. 
 

"É arte, mas também é indústria. Desde que esse universo existe, as coisas se confundem e se atropelam, e inevitavelmente alguns lados ficam magoados durante o processo. Além disso, tanto a música quanto projetos audiovisuais são meios de quem tem muitos fãs continuar explorando a própria popularidade. A arte sempre foi um negócio, e não tem nada de errado nisso", avalia Chico Barney.

Chico Barney, colunista de entretenimento.

Quem pode ser artista?
A legitimação sobre quem pode ser ou não ser artista, segundo a curadora de arte Clarissa Diniz, serve como uma ferramenta de dominação. "Acho que as hegemonias sociais e econômicas sempre buscaram definir quem pode (ou não) criar. Mas a arte está repleta de sujeitos e situações que constantemente desafiam essa hegemonia", avalia.

"Acho que qualquer pessoa tem o direito a se entender como artista. A quem interessa impedir o direito à criação e à expressão do outro? Jamais duvido de alguém que se diz artista. Como curadora, este é um limite ético intransponível para mim", pontua a curadora. 

"No mainstream artístico e cultural não se trata apenas do elemento estético ou do valor da legitimação, se trata de uma outra coisa, da 'celebrização' que alguém passa a ter. A reclamação de atores e atrizes porque tal ex-BBB vai cumprir um papel principal, na verdade é que isso vai chocar pessoas que buscaram se formar e ter uma formação artística ou que lutaram muito em diversas circunstâncias e querem, na verdade, fazer uma defesa de mercado", avalia Paulo Marcondes.

"A ex-BBB estará em um circuito de mainstream, que é a telenovela. Ela não é a primeira e não será a última que foi uma modelo, ex-BBB, famoso e celebridade - sobretudo na sociedade massiva que nós temos e ainda mais com o uso da sociedade de rede com a internet e diversas formas de expressão e de circulação. Vivemos uma sociedade de alto descarte e aí é como diria a profecia de Andy Warhol 'cada um terá seus 15 minutos de fama no futuro'. Talvez a gente esteja nele", conclui o sociólogo. 

 

Na obra "Merda de artista", artista italiano Piero Manzone (1922-1963),  influenciado pela ideia dos ready-mades de Duchamp, vendia latas com fezes ao preço do peso do ouro (Foto: Reprodução)