A intimidade de Gilberto Freyre é revelada pelo jornalista Mario Helio em seu novo livro
O lançamento será na próxima terça-feira (31), na Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, em Apipucos, Zona Norte do Recife, às 18h, aberto ao público
Um livro sobre um “historiador que tenta não se limitar à lógica histórica nem à exata cronologia.” É essa a definição do jornalista e escritor Mario Helio Gomes para A história íntima de Gilberto Freyre, que ele lança pela Cepe Editora na próxima terça-feira (31). Não se trata de uma biografia, mas de um mergulho na obra do intelectual “que considerava a intimidade necessária como veículo para a verdade histórica”, esclarece o autor na publicação. O lançamento será na Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, em Apipucos, Zona Norte do Recife, às 18h, aberto ao público. É a antiga residência do casal, que volta a receber visitantes depois de ficar fechada por dois anos.
Logo nas primeiras páginas, Mario Helio remete o leitor ao Recife do século 19 e início do 20, com a reprodução de anúncios publicados em jornais para noticiar fuga de escravos, comércio de sítios para moradia na Estrada dos Aflitos, aluguel de amas de leite e transformações na cidade. Esse ambiente rural e de escravidão, avalia o escritor, vai influenciar a vida e a obra de Gilberto Freyre, o famoso historiador e sociólogo pernambucano, nascido em 15 de março de 1900, na citada Estrada dos Aflitos, atual Avenida Conselheiro Rosa e Silva, no alvorecer do século 20.
“História íntima é uma expressão dos escritores franceses Jules (1830-1870) e Edmond de Goncourt (1822-1896) que, por assim dizer, norteou a concepção de história do jovem Gilberto Freyre e da qual não se separou, na prática, ao longo de toda a vida. Consiste em encontrar as camadas mais ocultas e secretas da história, inclusive as mais indiscretas”, explica Mario Helio, doutor em antropologia pela Universidade de Salamanca, na Espanha.
O título provocativo do livro diz muito sobre o sociólogo. “A ambiguidade reforça algo muito característico em Gilberto: é uma história sem intimidações, ou seja, ele não receia em usar a primeira pessoa e ser mais um personagem da história, pois o seu primeiro trabalho intelectual de fôlego - a dissertação de mestrado - foi uma tentativa de compreender o Brasil do tempo dos seus avós - e Casa-Grande & Senzala teve a ambição de ser uma espécie de autobiografia do Brasil. Sim, a expressão é desse jeito mesmo: não mera ‘biografia’ do Brasil, mas ‘autobiografia’ do país e dele, com sua história, inserido na História. Melhor ainda é a definição dele que está na afirmação de Lúcio Cardoso (escritor): ele sabia como nenhum outro inaugurar uma intimidade”, afirma.
Essa relação parcial e apaixonada pela história é narrada pelo autor a partir de uma leitura crítica da produção intelectual de Gilberto Freyre, desde a adolescência. Com 492 páginas, o livro tem origem na dissertação de mestrado em história defendida por Mario Helio na Universidade Federal de Pernambuco, em 1994. “É um desdobramento sem ser uma continuação”, informa. Ele apresenta um Gilberto Freyre romancista, com Dona Sinhá e o Filho Padre e O Outro Amor de Doutor Paulo, e mostra como esses títulos não estão distantes do sociólogo, antropólogo e historiador que aborda a escravidão em Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso.
No romance e na não ficção, o sociólogo perseguia a verdade histórica, reforça o escritor. Ao ser questionado se esse seria o motivo pelo qual a produção de Gilberto Freyre desperta interesse ainda hoje, Mario Helio responde: “Essa é uma das razões, sim. Não esquecer, porém, de que a busca da verdade num escritor não é maior do que o interesse estético, da imaginação e da linguagem, do vigor e do frescor e certo ar de atemporalidade são feitos os grandes autores, e Freyre é um desses no mundo ibero-americano.”
Para produzir A história íntima de Gilberto Freyre, o jornalista também se debruçou sobre o diário da juventude do sociólogo, que morreu em 1987. “Sexo é uma das palavras mais repetidas no seu diário íntimo e em Casa-Grande & Senzala. Tal importância tinha em sua mente que serve como metáfora da relação do leitor com os livros”, relata no livro.
Entrevista com o autor
Você diz, na publicação, que poucos críticos fizeram uma avaliação equilibrada dos livros de Gilberto Freyre. A história íntima vem com esse papel, de mostrar o escritor sem endeusamento, de alertar para a necessidade de se ler a sua obra com acuro antes de amá-la ou odiá-la?
Mario Helio - Sim. Penso que a melhor postura, não apenas intelectual, mas de vida, é aquela de Spinoza: Não ridicularizar, não lamentar nem odiar ou maldizer, mas entender. Uma postura ética, de honestidade e de interesse humano legítimo, mesmo quando algo nos desagrada, seja qual for o motivo. Uma atitude franca e desassombrada é rara entre os brasileiros, muito mais presos a preconceitos, crenças e ideologias do que costuma admitir. A tal “cordialidade” referida no famoso livro de Sérgio Buarque de Holanda está presente como uma coisa negativa, a da emoção contaminar o juízo, e da abordagem parcial, muitas vezes em nome de meras opiniões, sectarismos, militâncias, ser escamoteada. Um escritor com o nível de solidez e grandeza de Gilberto Freyre merece ser lido criticamente, mas sem que isto signifique atacá-lo ou desqualificá-lo.
No livro, você fala de críticos que comentam sobre Gilberto Freyre sem ter lido suas publicações. Qual o peso dos rótulos de racista e preconceituoso, atribuídos ao sociólogo, no comportamento desses críticos?
Mario Helio - A leitura é uma arte difícil, exigente, e ironicamente, um rótulo que não cabe a Gilberto Freyre e sim a quem o ataca sem haver lido ou ter feito apenas uma leitura superficial e cheia de clichês e adjetivações pré-moldadas, é a de preconceituoso. Nenhum autor brasileiro foi mais despido de preconceitos que ele, nenhum mais corajoso em opinar -muitas vezes contra a corrente - sobre os mais diferentes temas. Quanto a raça e racismo, ele foi o primeiro e ainda o maior dos intelectuais brasileiros, a abordar as questões de raça sem ênfase nos “ismos” e nos conflitos. De tal maneira defendia o equilíbrio e o convívio que pode ser acusado muitas vezes de ser um lírico esclarecido, não um racista ou preconceituoso.
Na sociedade atual, Gilberto Freyre seria classificado como um intelectual politicamente incorreto? Para você, qual é o grande mérito de Gilberto Freyre?
Mario Helio - Sim, politicamente incorreto sob vários aspectos, e acima ainda do nosso tempo, pois não conseguimos superar questões pendentes desde há séculos, seja no que diz respeito a política, a sociedade, a sexo etc. O grande mérito dele é a agudeza, a inteligência sensível, a abertura de espírito, a fome insaciável pelo conhecimento.
Gilberto Freyre era considerado o intelectual mais vaidoso do Brasil, e como você mesmo diz no livro, ele gostava de ser elogiado e de se auto elogiar. As críticas negativas e os eventuais erros apontados em suas obras tinham um peso maior para ele ou ele não dava importância?
Mario Helio - Um dos paradoxos de Gilberto Freyre é que a vaidade nunca o converteu num presunçoso, num antipático, num dogmático, senhor de si e apenas de si. As críticas e os erros apontados nas suas obras ele recebia-os, na maioria das vezes, muito bem, e corrigia os erros que reconhecia e admitia a partir dessas críticas. Basta ler as constantes atualizações e os prefácios que aumentavam seus principais livros.
Em 1994, você defendeu a dissertação de mestrado Gilberto Historiador, na UFPE. Passados quase 28 anos, você lança A história íntima de Gilberto Freyre. O que você descobriu sobre o sociólogo pernambucano nesse intervalo de tempo?
Mario Helio - Dizer que foram vários Gilbertos num só seria apenas incorrer no lugar-comum que se ampara na generalização. Melhor afirmar que da dissertação ao livro, num intervalo de quase duas gerações, em que as mais novas voltam a interessar-se por sua leitura e releitura, Freyre continua muito maior do que os seus intérpretes, é já um clássico moderno, não apenas no sentido passivo, mas ativo. Não apenas manejou como poucos o ego, mas espelhou, com suas máscaras, o próprio país, e foi um dos principais inventores do que ainda hoje se entende por Brasil. Nesse intervalo de tempo, ao ler toda sua obra, a descoberta foi mais de ‘outros’ Gilbertos que fizeram da história e da literatura uma espécie de jogo e que se empenhou a não ser aprisionado em rótulos, mas não pode escapar deles, ao aburguesar-se e administrar a própria glória não como simples self made man, mas com uma consciência teórica e prática da importância da autopromoção de que poucos autores brasileiros podem orgulhar-se.