A natureza resolveu partir para a revanche
Já moro em Brasília há muitos anos. Recifense de parto na maternidade da Encruzilhada, as circunstâncias da vida pessoal e profissional me levaram a fixar definitivamente residência nesta bela, rica e organizada cidade.
Filhos encaminhados, netos crescendo e a maioria dos amigos no entorno, embora as raízes familiares sejam profundas, meus vínculos com a Cidade Maurícia se tornaram esparsados.
Guardo belas recordações da minha infância no bairro da Boa Vista, correndo nos quintais dos casarões que pertenciam à família, colhendo manga das enormes mangueiras (pareciam-me arranha-céus) e brincando de pega-ladrão, jogando bola e armando o forte apache com os meus primos.
Vê-se, portanto, que o vínculo afetivo ainda me toma pelas lembranças. Por isso ficamos desolados, eu e minha esposa, com a tragédia meteorológica que se abateu sobre a região metropolitana do Recife.
Doloroso acompanhar dia a dia, pelos noticiários televisivos, o difícil resgate de corpos maculados pela lama traiçoeira que a chuva e suas consequências previsíveis nos levaram para sempre.
Esperançoso por ver a solidariedade pura que se formou para ajudar milhares de famílias desabrigadas, em sua maioria habitantes de áreas instáveis geologicamente.
Raivoso por acreditar que políticas públicas, se bem conduzidas, poderiam ter poupado tanto sofrimento a já tão sofrida população afetada pelo subemprego, carestia, inflação, falta de saneamento básico, saúde precária, ausência de água potável etc.
Políticas públicas aliás que não são patrocinadas regularmente pela maioria dos governantes - aqui faço uma ressalva -, sem distinção de cores partidárias, matizes ideológicos ou regiões do país.
Essa carência é claramente reflexo da incapacidade das lideranças, da ausência de cobrança do cidadão no dia a dia e do desleixo do eleitor na hora de teclar seu voto na urna eletrônica.
Não adianta olhar para o céu, convocar coletivas de imprensa para informar ações reativas ou sobrevoar áreas submersas sem que se saiba exatamente o objetivo do sobrevoo.
A fotografia postada nas mídias sociais não redimirá as autoridades de suas responsabilidades passadas, presentes e futuras.
A natureza, por vezes, resolveu partir para a revanche. Disse-me um eminente ex-ministro da Suprema Corte, igualmente tocado pela tragédia, igualmente nordestino.
Apanha calada, mas chora copiosamente, sofrendo as consequências do desleixo do humano em relação ao seu habitat natural.
Agora foi Recife, nos últimos meses Petrópolis no Rio de Janeiro e grande parte do Sul da Bahia, amanhã...
Resta-nos, no momento, buscar energia pela união de esforços. Acomodar os desacomodados. Prantear as perdas, desejando que essas sejam das últimas.
Depois é partir para o combate cidadão, exigindo o respeito genuíno das autoridades em todos os níveis de governança.
E vestir-se de brios, assumindo as nossas próprias responsabilidades como seres que vivem em uma tribo cercada de outras tribos, que se interconectam, que se dependem mutuamente e que precisam se curvar humildemente ao meio ambiente, única forma de assegurar possibilidade de haver um futuro nesse planeta azul chamado Terra.
Paz e bem!
*General de Divisão da Reserva
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