Coronavírus

Leite materno é usado para tratar Covid-19 em paciente com doença rara

Com utilização do leite materno ao longo de uma semana, o teste finalmente deu negativo, após dois meses dando positivo

Banco de leite materno - Rovena Rosa / Agência Brasil

Ao ser testada positivo para Covid-19 em março de 2021, uma paciente de 32 anos com síndrome de imunodesregulação, doença genética rara — com apenas 157 casos descritos no mundo — foi tratada com leite materno de uma doadora vacinada contra o SARS-CoV-2. Com o sistema imune incapaz de combater infecções, ela foi orientada a ingerir 30 mililitros do líquido a cada três horas durante uma semana.

Esta iniciativa foi promovida por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujos resultados foram publicados na revista científica Viruses. O vírus ficou ativo no corpo da paciente por pelo menos 124 dias.

Segundo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a principal autora do artigo, Maria Marluce dos Santos Vilela, disse que a resposta inflamatória da paciente é deficitária, de forma que ela tem baixa produção de anticorpos, incluindo o neutralizante de vírus que costuma estar presente no leite materno.

— O erro inato da imunidade que ela apresenta deixa seu sistema de defesa todo desregulado — descreveu a médica, que acompanha a paciente desde a infância e ficou apreensiva ao saber que ela estava com Covid-19. — As características de virulência dos agentes infeciosos podem levar a dois desfechos nesses casos: infecção crônica ou morte.

Desde que saiu o teste positivo para Covid-19, em março de 2021, a paciente foi mantida isolada em casa, sob os cuidados da mãe e sendo monitorada por vídeo pelos médicos, pois se ela fosse levada para o hospital, correria mais riscos de contrair uma infecção bacteriana, explicou Vilela, em comunicado da Fapesp divulgado nesta terça-feira. A mãe da paciente ajudou a monitorar sua oxigenação, temperatura e alimentação.

Sintomas da Covid-19 persistiram por dois meses

Nos primeiros 15 dias de infecção, a paciente apresentou febre, perda de apetite e de peso, tosse e indisposição. Dois meses depois, a equipe realizou, em parceria com o Hemocentro da Unicamp, a transfusão de anticorpos produzidos por pessoas que haviam se curado da Covid-19. Ainda que os sintomas tenham melhorado um pouco, o exame RT-PCR permanecia positivo mesmo após duas semanas. A paciente apresentava adinamia, ou seja, grande fraqueza muscular devido à doença.

— Nessa mesma época, saíram os resultados de um estudo mostrando que mulheres lactantes imunizadas com a vacina da Pfizer produziam leite com uma quantidade razoável de IgA [uma imunoglobulina]. Decidimos então fazer a experiência assistencial de reposição de IgA via leite materno — explicou Vivela, que é professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM-Unicamp).

Diante do tratamento inovador, com utilização do leite materno ao longo de uma semana, o teste finalmente deu negativo. Outros dois exames foram feitos a cada 10 dias e também não detectaram mais o coronavírus.

— E ainda seguimos fazendo testes de RT-PCR para SARS-CoV-2. Nossa preocupação é que, com as novas variantes, ela adquira uma infecção assintomática — disse a médica.

Uma mesma infecção, pela variante Gama

Para ter certeza de que se tratava de uma mesma infecção, o grupo de pesquisada, liderado pelo professor José Luiz Proença Módena, sequenciou o genoma do SARS-CoV-2 isolado de três amostras coletadas em diferentes momentos. Os dados mostraram que a paciente foi cronicamente infectada pelo mesmo vírus, identificado como da variante Gama.

Vilela destacou a importância da segurança que envolve o procedimento para compor os bancos de leite, que exige testes negativos para doenças infecciosas como Aids, sífilis e hepatite, entre outras. A médica também afirmou que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundamental, pois "permitiu o resgate das amostras para as análises genômicas".

— E, além disso, garantiu a segurança tanto do plasma de convalescente quanto do leite materno usado no tratamento. E como o controle de qualidade da rede é o mesmo em todo o país, eu pude instruir um colega do Acre a atender um paciente com uma imunodeficiência similar — completou.