Música

Gonzaga Leal e SaGrama reinterpretam registros de Mário de Andrade sobre a cultura popular

Lançamento do álbum "Na trilha de uma Missão", de Gonzaga Leal e SaGRAMA, no Teatro de Santa Isabel - Helder Ferrer / Divulgação

Lançado em parceria pelo cantor, ator e dramaturgo Gonzaga Leal e o Grupo SaGRAMA, o álbum “Na Trilha de Uma Missão” é, antes de tudo, um importante documento histórico da cultura popular brasileira. O repertório do disco foi construído a partir dos registros feitos pelo escritor Mário de Andrade (1893-1945), durante a viagem “Missão de Pesquisas Folclóricas (1938)”, em que percorreu parte das regiões Norte e Nordeste, passando por Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará.
 
A iniciativa de Gonzaga e SaGRAMA em gravar parte desses registros de Mário de Andrade em novos arranjos e interpretações, reverencia um acervo riquíssimo, que foi editado pela última vez em 2006 em uma caixa de CDs lançada pelo selo SESC-SP. Neste novo recorte sobre os registros do escritor paulista estão reunidos materiais recolhido em Pernambuco, incluindo cânticos afro-brasileiros, cantoria de viola, música indígena, toadas do sertão, com títulos como “Mandei cortá capim”, “Chamada de Aricury” e “Sereno de Amor”. O show de lançamento do álbum, que teve patrocínio do Funcultura, aconteceu no início do mês, no Teatro de Santa Isabel.

A descoberta de Mário de Andrade
“Meu pai certa vez me deu um livro das cartas de Mário de Andrade com Manuel Bandeira. E, a partir daí, eu que adoro ler cartas, despertei sobre a obra dele. Depois, dei de cara com essa missão que ele fez pelo Norte e Nordeste brasileiro, passando por Pernambuco. Ele tinha interesse por um Brasil verdadeiramente profundo”, pontua Gonzaga. 

E Mário de Andrade tinha mesmo uma urgência sobre a cultura brasileira. “O papel do artista criador não é figurar uma nacionalidade, mas transfigurá-la”, definiu o próprio Mário no livro “Camargo Guarnieri - o tempo e a música, quatro anos antes de embarcar em sua missão pelos rincões do país. Estimulado pelo que se fazia na Europa com o estudo de músicas étnicas e populares, resolveu agir. Em 1938, enquanto diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, organizou uma Missão para registrar manifestações populares típicas dessas regiões isoladas, que corriam o risco de desaparecerem com a urbanização do país. 

Catálogo histórico-fonográfico
Sua preocupação era que o rádio – o meio de comunicação que dominava à época - pudesse concorrer para o esquecimento dessas expressões de raiz. Criou uma equipe formada pelo maestro Martin Braunwieser, o arquiteto e membro da Sociedade de Etnografia e Folclore Luiz Saia e os técnicos de som Benedito Pacheco e Antônio Ladeira. O grupo embarcou em fevereiro de 1938 e retornou em agosto, por ordem do então novo prefeito de S. Paulo Prestes Maia, que acabou afastando Mário de Andrade do cargo e desfez a expedição alegando muitos gastos.

Apesar disso, reuniu-se um grande acervo nas 28 cidades de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará, catalogando mais de 70 grupos musicais e artistas independentes, criando um catálogo histórico-fonográfico com 1.299 fonogramas originais da música popular tradicional, gravado ao vivo, em discos de acetato com sistema de 78 rotações. 

Para a época, pode-se imaginar o tamanho da bagagem da equipe: os pertences pessoais dos pesquisadores somavam-se a seis malas e três caixas que abrigavam gravador, amplificador, agulhas, microfones com cabos e tripé, válvulas, 237 discos, gerador, pré-amplificador, blocos de papel, cadernetas para anotação, fones, pickup para gravador, 118 filmes para fotografia, 21 filmes para cinematografia, câmera fotográfica com filtros e lentes, aparelho cinematográfico com lentes e pastas de couro para transporte dos discos. O grupo registrou cânticos diversos, cantigas de roda, cantos de pedintes, cantos de carregadores de piano, bumba meu boi, congo, reisado, coco, entre outros.

Gonzaga Leal e SaGRAMA, no Teatro de Santa Isabel

Escolha do repertório
Com pesquisa e direção artística do próprio Gonzaga Leal e direção musical de Cláudio Moura - que não apenas dirige o grupo SaGrama como também assina a música dos discos de Gonzaga há 25 anos - a seleção de músicas do álbum levou em conta o contexto dramatúrgico de como essas canções se inseriram nas outras.

“A gente teve esse cuidado. O grande desafio foi poder entender essas canções. Porque as gravações não eram das melhores e algumas palavras tivemos dificuldade de acessar. Eram coisas muito simples, mas também muito profundas”, conta o artista.

Sobre os artistas
Gonzaga Leal tem estudos em canto lírico e popular. Desde os anos 1970 segue trajetória na música brasileira. Atuou em shows e discos ao lado de Edu Lobo, Milton Nascimento, Ná Ozzetti e Cida Moreira. Tem 15 álbuns lançados, entre eles O Olhar Brasileiro (2000), Cantando Capiba e Sentirás o meu cuidado (2004), além de Porcelana (2016) e Olhando o Céu viu uma Estrela, os dois últimos em parceria com duas grandes vozes da nossa música, Alaíde Costa e Áurea Martins, respectivamente. Nas palavras do jornalista e crítico pernambucano Ricardo Anísio, "Gonzaga é sim 'um pernambuco cantando para o mundo'. E o mais superlativo é que sua visão de arte não dá fungo, não fungou sua visão como fungaram a de tantos".
 
O SaGRAMA existe desde 1995, e trabalha a música pernambucana baseada nas manifestações da cultura popular, com linguagem próxima da música erudita. Traz em seu repertório gêneros do folclore e folguedos, como frevo, maracatu, baião, coco, xaxado, boi de carnaval, caboclinhos... É formado por 10 instrumentistas. Tem vários CDs lançados e parcerias com artistas como Elba Ramalho, Wagner Tiso e Yamandu Costa. Um dos seus trabalhos de maior destaque é a trilha sonora da série da TV Globo, que depois virou longa-metragem O auto da compadecida (2000).
 

Gonzaga Leal e SaGRAMA, no Teatro de Santa Isabel

O Brasil por Mário de Andrade
De que maneira podemos concorrer para a grandeza da humanidade? É sendo franceses, americanos ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que formos inteiramente brasileiros, a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma combinação de qualidades humanas. Não só seremos civilizados em relação às civilizações, o dia em que criarmos a orientação brasileira.

Então, passaremos da fase do mimetismo para a fase da criação. E então, seremos universais, porque nacionais. E mesmo se não formos, nós já completamente brasileiros, as outras gerações que virão, desenvolvendo o nosso trabalho, hão de levar esta terra à sua civilização. Como vê, eu formulo votos, tenho esperança sem vergonha nenhuma. Viva eu, viva tu! Viva o povo brasileiro! Viva o rabo do tatu!
Mário de Andrade, São Paulo (SP), 1938