Você sabe como surgiram as tradições de São João? E por que são mais fortes no Nordeste? Entenda
Ciclo junino tal como o conhecemos, incluindo o 'raiz' das quermesses e arraiais na porta de casa, é resultado de misturas e adaptações culturais ao longo dos séculos.
Meninos brincando de roda
Velhos soltando balão
Moços em volta à fogueira
Brincando com o coração
Eita, São João dos meus sonhos!
Eita, saudoso Sertão, ai!, ai!
Impossível ler ou ouvir os versos de “Noites Brasileiras”, um desses clássicos inesquecíveis na voz de Luiz Gonzaga (1912-1989), compositor da canção ao lado de Zé Dantas, sem montar uma cena de filme na cabeça.
Estão ali alguns dos principais elementos da festa mais tradicional e carregada de simbolismos que marca o interior do Nordeste. Os “meninos”, os “velhos”, os “moços”... Todos “brincando” e “soltando balão”, “em volta à fogueira”, no “saudoso Sertão”, um mundo simples e lúdico, emotivo e aconchegante, alegre e familiar. Hoje, exatos 60 anos após o lançamento da música no LP “São João na Roça” pela RCA Victor, o São João ora se aproxima, ora se distancia, daquele universo expresso pelo cantor de “Asa Branca”.
Parece que sempre foi assim, mas o ciclo junino tal como o conhecemos - não só o “moderno”, dos grandes shows para multidões, como também o “raiz”, dos arraiais e das quermesses na porta de casa - é resultado de uma série de transformações geradas a partir de misturas e adaptações culturais.
Da chita nas vestes às comidas e bandeirinhas (veja no infográfico abaixo), todos os elementos da festividade vendida como essência de uma “identidade nordestina” são frutos de costumes vindos de lugares e épocas diversas. E, por isso mesmo, são tão bonitos.
“É um momento de confraternizar com minha família e amigos e de mostrar a cultura da minha cidade para as outras pessoas”, afirma a jornalista e estudante de Direito Katarina Vieira, de 28 anos, que frequenta o São João de Arcoverde desde a infância.
Mas você sabe como surgiram essas tradições? E por que elas se enraizaram de maneira especial no Nordeste? Pois, siga na leitura que a Folha de Pernambuco ouviu especialistas para discutir o assunto.
Festa do solstício
Muito antes do próprio surgimento da religião cristã, o fogo já era cultuado na Europa por diferentes povos nesta época do ano, quando o Hemisfério Norte passa pelo solstício de verão, momento em que a inclinação da Terra faz determinado polo do globo receber mais raios solares, ocasionando dias mais longos.
“É o período relacionado à fartura, lembrando que as sociedades da Antiguidade e da Idade Média eram muito dependentes da agricultura. Então, desde os fenícios e os gregos, havia entidades ligadas ao casamento, à fertilidade, à colheita, como Janus, que eram celebrados com rodas em torno de uma fogueira”, explica a historiadora Cibele Barbosa, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
A primeira transformação radical se deu nos tempos medievais. Sem fazer frente a esse e a outros cultos pagãos incrustados nos hábitos populares, a Igreja Católica decidiu incorporar a festa do fogo ao próprio calendário religioso, associando-a ao nascimento de São João Batista, primo de Jesus Cristo.
“Havia escritos, no século 6, de uma certa condenação àquelas festas do povo, mas depois a igreja foi percebendo que precisava reter os fiéis. E a melhor forma de fazer isso era adaptar o festejo a uma santidade cristã”, diz a especialista. Foi daí que surgiu a história de que a mãe de São João, Santa Isabel, acendeu uma fogueira para avisar à prima Maria que o filho dela havia nascido.
Nas terras do Sul tropical
Colonizado por Portugal, reino ibérico que permaneceu fiel ao Vaticano, trazendo para o “Novo Mundo” as práticas e diretrizes da Contrarreforma, o território onde hoje se situa o Brasil recebeu, durante séculos, as comitivas de padres jesuítas, que vinham catequizar (e aculturar) os povos nativos das terras conhecidas pelo nome de Pindorama.
A partir do contato com os indígenas, que por aqui também celebravam o solstício de inverno - época que coincide com o fim da colheita de milho -, as festas juninas absorveram novos elementos, hoje vistos nas comidas típicas.
Mas foi no século 19 que a festividade começou a tomar a forma conhecida na atualidade. A vinda da corte portuguesa ao Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, em 1808, introduziu mais um divertimento que incrementaria o festejo: as quadrilhas. A dança que consiste na troca de pares surgiu na aristocracia francesa, bastante influente nos outros países europeus, incluindo Portugal.
“E isso chega ao conhecimento das camadas populares, que fazem sua própria leitura de uma dança aristocrática. Há uma espécie de imitação, que se junta a outros folguedos, como a ‘contação de causos’ engraçados ou o casamento na roça, que é, também, uma sátira dos costumes familiares”, acrescenta a pesquisadora Cibele Barbosa.
Da chita ao forró
À medida que novos elementos eram incorporados, a festa foi crescendo no Brasil rural do Império e da República Velha. Tecido barato de origem indiana, também trazido pelos colonizadores, a chita, com as estampas floridas e quadriculadas, era de uso comum no dia a dia do interior, assim como o hábito católico de criar bandeiras e imagens para representar e reverenciar os santos. Com o tempo, as flâmulas sofreram adaptações e passaram a ser usadas também para enfeitar a cidade.
Na música, mais inovações. A chegada dos acordeons por imigrantes europeus durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) provocou uma nova mistura de ritmos e arranjos com instrumentos africanos e indígenas, que, lá na frente, já na década de 1930, culminaria na criação do forró, conjunto de danças e gêneros musicais difundido para o Sul e Sudeste do País pela sanfona de Luiz Gonzaga e transformado em símbolo absoluto do Nordeste pela mídia de massa.
‘Arraiás’ e multidões
Nos anos 80, o São João entra no calendário dos grandes eventos nos centros urbanos, com direito a investimentos públicos, patrocínios privados e shows de atrações nacionais. O baião passa a dividir espaço com o sertanejo e o forró estilizado, e as mudanças geracionais exigem mais adaptações. A preocupação com a necessidade de evitar impactos ambientais, por exemplo, motiva não apenas a proibição dos balões, que podem causar incêndios, como também a discussão sobre fogueiras ecológicas.
“No século 20, cria-se o modelo de uma suposta festa do interior que estaria desaparecendo no Brasil. E nesse modelo folclórico do que seria o interior, entram esses elementos do quadriculados, das bandeirinhas, do ‘arraiá’, definindo o que se entende por tradicional”, afirma a historiadora Lídia Santos, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) que pesquisa sobre as festas do período colonial.
Por que no Nordeste?
Colonização, religiosidade e êxodo rural. Esses e outros fatores históricos que contribuíram para a consolidação do São João não são exclusivos do Nordeste. Inclusive, há festas juninas no Sul e Sudeste do País. Então, por que foi nesta região que a festa mais se desenvolveu a ponto de se confundir com a própria identidade do lugar e das populações que o habitam?
“Acho que a gente, no Nordeste, passou por um momento muito próprio dessa modernização. O Sudeste era o centro de recepção e a gente acabou se aliando àquela ideia do ‘atrasado’, que vai lá fora buscar o sucesso, por mais tempo. Não é mais assim, mas esse modelo de tradições ficou mais forte aqui”, observa a professora Lídia Santos.
“O grande peso da agricultura aqui também vai ajudar a gente a se identificar com a festa. E a gente tem muito fortes as culturas cristãs, indígenas e africanas. O culto a Xangô e a festa do milho indígena dialogam diretamente com isso”.
A historiadora Cibele Barbosa lembra ainda o fator da midiatização. “A gente nota muito essa ideia de Nordeste sendo propagada na década de 50, principalmente com as músicas de Luiz Gonzaga, que faz essa tradição ganhar uma dimensão maior”, analisa.