Discussão

Debate sobre aborto no Ministério da Saúde vira palanque político

Pasta convocou evento para discutir cartilha polêmica sobre interrupção da gravidez

Ministério da Saúde - Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A audiência pública do Ministério da Saúde para discutir sobre uma cartilha feita pela pasta para tratar sobre a conduta em casos de aborto se converteu em um palanque político. Durante sua fala, o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, citou nominalmente em sua apresentação o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato ao Palácio Planalto, para criticar a posição de governos anteriores em relação ao tema.

Ao falar sobre números de aborto no país, o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara afirmou que outros governos inflavam dados para conseguir apoiadores à causa. Em uma tela de sua apresentação, Câmara citou nominalmente Lula que, segundo ele, teria admitido em entrevista citar dados sem respaldo estatístico.

— Importante são os números que são muitas vezes colocados e não têm menor fundamento. Se falava que morriam mil, duas mil, 10 mil, 50 mil, até 70 mil mulheres por ano por aborto ilegal. Sendo que morrem por ano cerca de 60 mil mulheres em idade fértil — disse ele, acrescentando: — Lamentavelmente no Brasil nos últimos tempos os números eram jogados para hiperbolizar e com isso conseguia aderir pessoas à causa.
 

O ministério da Saúde convidou para o evento parlamentares conservadores como a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), o senador Eduardo Girão (PODE-CE), a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) e a deputada estadual por São Paulo Janaina Paschoal (PRTB). Todos são contrários à legalização do aborto. Kicis e Paschoal defenderam que a pasta altere a cartilha para evitar polêmicas e resistências desnecessárias. A secretária Nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Gandra, e a conselheira do ex-presidente americano Donald Trump, Valerie Huber, também participaram da audiência para defender a cartilha do governo.

O Ministério da Saúde alega que convidou pessoas com posições divergentes. Até 13h30, além de dois secretários do Ministério da Saúde, dezoito convidados tinham participado da audiência, dos quais ao menos 12 manifestaram posições antiaborto. Entre eles, estavam juristas, médicos e líderes de associações contra a legalização do aborto.

A pasta também chamou representantes do CNJ, da Defensoria Pública da União, Comissão de Direitos Humanos da Câmara e do Senado, Comissão do Direito da Mulher da Câmara. A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) compareceu à audiência pública e afirmou que, embora não tivesse sido convidada, utilizou de suas prerrogativas como parlamentar para participar do evento.

Embora a cartilha do Ministério da Saúde tenha afirmado que "todo aborto é crime". No Brasil, o aborto é autorizado em casos de risco de vida para a mãe, estupro e feto anencéfalo. A audiência pública foi convocada pela pasta após o documento gerar ampla repercussão negativa.

O senador Eduardo Girão parabenizou o governo por sua postura em relação ao aborto. Em sua fala, o parlamentar expôs um boneco de um feto para criticar a interrupção da gravidez de uma criança de 11 em Santa Catarina.

— Somos um país pró-vida e cada vez mais pró-vida pela ousadia, no bem, de pessoas. Tenho muitos questionamentos sobre o atual governo, tenho independência e coloco isso, mas esse governo está de parabéns pela coragem em defender a vida — afirmou o senador.

A deputada federal Bia Kicis argumentou que o Ministério da Saúde não é o local para questionamento da lei e sugeriu que a pasta acate sugestões de entidades e evite a discussão sobre aborto legal ou não. A parlamentar, no entanto, reiterou sua posição antiaborto.

— É preciso que, sem querer descumprir a lei e impedir que ela seja cumprida, a sociedade ajude as mulheres nesse momento para que não tenham apenas a opinião de alguém que quer incentivar a interrupção da gravidez — disse Kicis.

O posicionamento contra a legalização do aborto é uma das pautas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro. Na semana passada, ele criticou a interrupção da gravidez de uma criança de 11 anos vítima de estupro. Bolsonaro classificou como "inadmissível" o aborto legal garantido à criança.

A deputada Sâmia Bomfim afirmou que o legislativo tentará barrar a cartilha judicialmente. A parlamentar acusou o secretário Raphael Câmara de adotar comportamento misógino.

— Tem gasto de dinheiro público para fazer um verdadeiro caça às bruxas às meninas desse Brasil que estão completamente desamparadas e deveriam ser acolhidas. Eu sou mãe e não quero que no Brasil ensinem ao meu filho que as meninas são culpadas pela situação de violência que elas passam — criticou.

Representante do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais, Nálida Monte argumentou que a cartilha publicada pelo governo pode fragilizar o acesso de mulheres à saúde. Segundo ela, a cartilha incentiva opção de entrega voluntária da criança em detrimento do aborto legal e coage profissionais de saúde e mulheres.

— Não se deve hierarquizar alternativas. Esse documento do Ministério da Saúde não cumpre sua finalidade de melhor orientar os profissionais de saúde e, embora não possua caráter normativo, pode limitar o acesso aos cuidados em saúde de mulheres e meninas em decorrência de sua imprecisão técnica e de sua inconsistência científica, gerando em mulheres , meninas e profissionais de saúde, medo, coerção e sensação de insegurança jurídica — afirmou Monte. — Se a redação atual for mantida, cotidianamente, vamos testemunhar meninas de 11 anos sem acesso à saúde como testemunhamos na ultima semana no Brasil.