Manguebeat: os 30 anos do movimento que fez a cena do Recife colocar os pés na lama
Em julho de 1992, Frede Zero Quatro escreveu o manifesto "Caranguejos com Cérebro", marco da cena
"Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife". Era essa a solução para "devolver o ânimo" e "recarregar as baterias" da cidade apresentada em "Caranguejos com Cérebro", texto escrito por Fred Zero Quatro, líder do Mundo Livre S/A, em julho 1992, com a intenção de servir como material de divulgação para a imprensa, mas que acabou abraçado como o primeiro manifesto do Manguebeat, movimento que celebra 30 anos de existência.
"Na verdade, era um release que acompanhava uma fita demo reunindo as bandas que transitavam nesse núcleo do Manguebeat. Não era nem a nossa pretensão que aquilo fosse recebido como um manifesto, mas a mídia começou a tratar assim e a gente deixou o rótulo colar", esclarece o jornalista Renato L, um dos idealizadores do movimento cultural que colocaria o Recife novamente no radar musical nacional.
O texto, no entanto, só tornava pública uma movimentação que havia eclodido na "Veneza brasileira" naquele início dos anos 1990. Diante do marasmo cultural enfrentado pela Cidade até então, um coletivo de músicos, artistas plásticos, jornalistas e outros "agitadores culturais" passou a se articular.
"No Recife dos anos 1980, ao contrário de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília e Salvador, não aconteceu nada muito relevante em termos musicais. O Manguebeat surge como uma resposta a essa situação de estagnação", aponta Renato.
A "imagem-símbolo" do movimento - uma antena parabólica enfiada na lama - descreve bem sua proposta. O que os "mangueboys" e "manguegirls" desejavam era conectar o que vinha de fora às tradições locais, retransmitindo para o mundo os resultados desses encontros. "A gente queria criar uma cena tão rica e diversificada quanto os manguezais, conseguindo dialogar tanto com o maracatu como o hardcore", pontua Renato.
Autoestima e efervescência
Para Fred Zero Quatro, o Manguebeat trouxe autoestima para a cultura pernambucana em geral, mas principalmente para a periferia. "Foi um movimento surgido no Grande Recife e com muita efervescência nas periferias", salienta. O percussionista Gilmar Bolla 8, um dos fundadores da Nação Zumbi, também destaca essa origem que não está diretamente ligada a uma elite cultural. "Antes do manifesto ser escrito, já havia movimentação minha no bairro de Peixinhos, com o Lamento Negro, e de Chico Sciende em Rio Doce", lembra.
Os perfis sociais e geográficos de alguns dos grandes expoentes do movimento, para Renato L, tiveram implicações diretas nos trabalhos desenvolvidos por esses artistas. "No caso das letras das músicas, a visão da realidade brasileira é de quem vive na periferia. Também há o fato de que algumas das influências básicas do Mangue, como o hip hop, eram movimentos musicais muito presentes na periferia nos anos 1980. Chico Science e Jorge Du Peixe, por exemplo, eram dois b-boys", observa.
Quanto vale uma vida?
A morte precoce de Chico Science, vítima de um acidente de carro em fevereiro de 1997, foi um duro golpe não só para seus companheiros de Nação Zumbi, mas para o Manguebeat como um todo. No mesmo ano, Fred Zero Quatro e Renato L assinaram "Quanto Vale uma Vida", segundo manifesto do movimento, que reafirmava os seus valores e defendia a continuidade da cena.
Depois de três décadas, é inegável o legado construído pelo Manguebeat. Grupos e artistas que despontaram naquela cena, como Banda Eddie, Otto e Mundo Livre S/A, seguem em plena atividade, e outras bandas que surgiram depois deixam transparecer essa referência. Além disso, Renato aponta ainda um rastro de mudanças comportamentais deixadas pelo movimento.
"O Manguebeat exerce ainda uma influência muito grande na cultura pernambucana. Hoje, esse conceito de diversidade cultural é hegemônico por aqui. Também acho que há uma lição embutida no movimento de como se organizar coletivamente, com poucos recursos, para mudar as coisas", reflete.
Leia o manifesto "Caranguejos com Cérebro" na íntegra:
"Caranguejos Com Cérebro (manifesto)
Fred Zero Quatro
O primeiro manifesto do Mangue, na íntegra e em sua versão original de 1992.
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown".