Saiba como idosa vítima de golpe milionário conseguiu sair de casa para procurar ajuda contra bando
Mulher era mantida em cárcere privado pela própria filha, que tentou fugir, mas foi presa nesta quarta-feira (10)
A viúva de Jean Boghici, vítima de um golpe milionário organizado pela própria filha e por uma quadrilha de falsos videntes, ficou em cárcere privado de janeiro de 2020 a abril de 2021. Ela não conseguia ter contato com parentes e amigos e nem tinha acesso a telefone.
No mês de abril, a idosa de 82 anos conseguiu pegar uma chave reserva e esperou Sabine Boghici sair de casa para fugir. A vítima foi até a casa de uma amiga, contou o que estava vivendo e pediu ajuda para ligar para uma Clínica Psiquiátrica e pedir a internação da filha.
Ao saber da internação, Sabine fugiu e desde a ocasião não foi mais vista pela viúva. A idosa trocou as fechaduras da casa e proibiu que os porteiros deixassem a filha entrar no prédio. De acordo com o delegado Gilberto da Cruz Ribeiro, quase um ano depois, em janeiro de 2022, a própria idosa procurou a delegacia, acompanhada por um advogado. Segundo o titular da Deapti, a vítima estava “muito assustada com tudo que aconteceu” e depois de muito hesitar, decidiu denunciar a filha.
— Ela levou quase um ano para fazer a denúncia. Ela foi na nossa delegacia no primeiro semestre de 2022. (Quando chegou lá) a senhora estava muito amedrontada e estava com o sentimento de mãe de: “como vai denunciar a minha filha?” – contou o delegado.
Nesta quarta-feira, a Polícia Civil realizou a Operação Sol Poente, que desarticulou a quadrilha de golpistas. Sabine Coll Boghici, filha do colecionador Jean Boghici e da vítima, e outras três pessoas foram presas: Jacqueline Stanescos, Rosa Stanesco Nicolau e Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger. Diana Rosa Aparecida Stanesco Vuletic e Slavko Vuletic tiveram o mandado de prisão expedido, mas seguem foragidos. De acordo com a polícia, os suspeitos cometeram os crimes de estelionato, roubo, extorsão, cárcere privado e associação criminosa.
Segundo as investigações, a filha da vítima manteve um contato assíduo com Rosa Stanesco Nicolau, a Mãe Valéria de Oxossi, nos últimos quatro meses de 2019. Nessa ocasião os crimes começaram a ser planejados. A quadrilha, na verdade, se formou num núcleo familiar. Rosa é mãe de Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger, um dos homens que receberam transferências bancárias feitas pela idosa, e irmã por parte de mãe de Diana Rosa Aparecida Stanesco Vuletic, que se passou por vidente e fez a abordagem à vítima. Já Diana é filha de Slavko Vuletic e nora de Ronaldo Ianov, ambos também tiveram repassados para suas contas bancárias valores das extorsões praticadas pelo grupo. Jacqueline Stanescos, que também se passava por vidente, é prima de Diana e de Rosa.
Ao longo de 20 anos, a atuação do grupo de falsas videntes têm vários registros em delegacias. Com quase nenhum patrimônio declarado, elas tinham o hábito de depositar o dinheiro extorquido na conta de terceiro. O mesmo é feito com os carros de luxo, que são colocados no nome de parceiros. Diana, que segue foragida, já havia sido presa por aplicar golpes nas ruas de Copacabana, Ipanema e Leblon, na Zona Sul do Rio. Ela é investigada por cometer crimes como estelionato, extorsão, ameaça, falsidade ideológica, lesão corporal, injúria por preconceito e até maus-tratos, cárcere privado e estupro.
O caso
De acordo com o inquérito da Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa da Terceira Idade (Deapti), em janeiro de 2020, após sair de uma agência bancária em Copacabana, a idosa foi abordada por Diana Rosa Aparecida Stanesco Vuletic, que, apresentando-se como vidente, disse que a filha da viúva estava doente e morreria em breve. Ela conseguiu convencer a vítima de ir até o apartamento dela, na Rua Barata Ribeiro, onde teria jogado búzios e constatado o “evento trágico”. Posteriormente as duas seguiram para um apartamento no Leme, onde morava outra falsa vidente, identificada como Jacqueline Stanescos, que confirmou a previsão. Em busca de uma “solução”, a vítima foi levada até a casa de Rosa Stanesco Nicolau, conhecida como Mãe Valéria de Oxossi, na Rua Maria Quitéria, em Ipanema, que ofereceu para fazer de trabalhos espirituais para a cura de Sabine pelo valor de R$ 5 milhões de reais. Todas elas estavam envolvidas no esquema.
Até então, a idosa não tinha conhecimento da relação da filha com a “mãe de santo”. Na dúvida sobre o que fazer, a vítima compartilhou as “informações” com Sabine, que envolvida no golpe, orientou a mãe a aceitar a proposta e providenciar imediatamente o pagamento para que ela fosse “protegida”. Com o pedido da filha e acreditando que as previsões poderiam se concretizar, já que Sabine sofria de problemas psicológicos como depressão e síndrome do pânico, a idosa efetuou as transferências entre os dias 22 de janeiro e 5 de fevereiro de 2020. Entre os beneficiados estavam Ronaldo Ianov e Slavko Vuletic.
Isolamento e roubo
Alguns dias após o início do tratamento espiritual, Sabine começou a isolar a mãe de pessoas com quem ela convivia regularmente, além de dispensar funcionários que prestavam serviços domésticos, com a justificativa de preservá-la durante a pandemia de Covid-19. Os únicos que acessavam o imóvel eram as pessoas ligadas ao tal tratamento espiritual, que aproveitavam essas ocasiões para pegar objetos de valor no apartamento. Eles usavam como desculpa, que os itens estavam amaldiçoados e deveriam ser rezados. Segundo as investigações, 21 jóias e três relógios Rolex foram levados pela quadrilha, avaliados em R$ 6 milhões. Além disso, 16 obras de arte, assinadas por nada mais do que Tarsila do Amaral, Cícero Dias, Albert Guignard, Emeric Marcier, Kao Chi-Feng, Michel Macreau, Ilya Glazunov, Di Cavalcanti, Antônio Dias e Rubens Gerchman, foram roubadas.
Em fevereiro de 2020, desconfiada de que a filha agia em comum acordo com as falsas videntes envolvidas na fraude, a idosa resolveu suspender os pagamentos. A partir daí, sua filha passou a agredi-la fisicamente e a deixá-la sem comer. As medidas seriam para forçar a vítima a voltar a realizar as transferências. A vítima chegou a ser ameaçada com uma faca no pescoço por Sabine enquanto Rosa dava as ordens pelo viva-voz do celular. As ameaças de morte se agravaram e Rosa Stanesco Nicolau chegou a frequentar a residência da vítima para ameaçá-la.
Em setembro de 2020, a idosa realizou 38 novas transferências para Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger, filho de Rosa, a Mãe Valéria de Oxossi, totalizando R$ 4 milhões de reais.
Obras roubadas
Das 16 obras de arte roubadas, 11 foram recuperadas pela polícia na casa de Rosa Stanesco Nicolau, na manhã desta quarta, em Ipanema. Os policiais precisaram arrombar a porta do imóvel na Rua Maria Quitéria, onde encontraram a filha da vítima, Sabine Coll Boghici, e a dona do apartamento, Rosa Stanesco, que ainda tentou fugir pela janela. Segundo a polícia, Sabine e Rosa tinham uma união estável. Os quadros apreendidos na casa, estavam escondidos embaixo da cama, devidamente embalados, como se já estivessem prontos para a venda. Entre eles, estava a famosa obra “Sol Poente”, de Tarsila do Amaral, avaliada em R$250 milhões de reais.
— Todas elas estavam devidamente embaladas com papel bolha, papel manteiga e fita crepe como se já estivessem prontas para uma venda. A única obra que estava com plástico bolha e papel manteiga rasgados era justamente o Sol Poente, a obra mais cara a princípio do acervo. Era como se, em algum momento, o plástico tivesse sido rasgado para que alguém visse a obra ou fizesse uma foto divulgação – explicou, Nilton Thaumaturgo, chefe do Serviço de Perícias de Merceologia do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), que constatou de forma preliminar a originalidade das obras.
As outras cinco obras foram vendidas por Sabine para uma galeria de arte de Ricardo Camargo, em São Paulo. Foram elas: "O Sono", de Tarsila do Amaral; "O menino", de Alberto Guignard; "Mascaradas", de Di Cavalcanti; "Maquete para o meu espelho"; de Antônio Dias; e "Elevador Social"; de Rubens Gerchman. Com a deflagração da Operação nesta quarta, Ricardo devolveu três delas. As outras duas já tinham sido revendidas, em 2021, para o colecionador de arte e fundador do Museu de Arte Latino-Americana (Malba), em Buenos Aires, na Argentina, Eduardo Constantini.
Ao ser questionado por policiais, Ricardo informou que, por conhecer a família Boghici, foi induzido a realizar as vendas e devolveu as obras que ainda estavam expostas no local. Já Eduardo Constantini emitiu uma nota dizendo que adquiriu quatro obras "dessa importante coleção de arte moderna brasileira" por meio do galerista Ricardo Camargo e que "duas dessas obras pertenciam à filha de Boghici". Ele alegou que as compras de “Elevador Social” (1966) de Rubens Gerchman e “Maquete para o espelho menu” (1964) de Antonio Días foram feitas de "boa-fé e foram devidamente registradas”.