Tempo seco, La Niña e ação humana: Entenda a recorrência de incêndios no Cerrado
Nos primeiros cinco dias de setembro, houve 2.810 focos de queimada detectados no bioma, número 106% maior que o mesmo período do ano passado
O grande incêndio, registrado nesta segunda, no Parque Nacional de Brasília ilustra o momento de seca e de recorrência de focos de queimada no Cerrado, nesse início de setembro.
Segundo especialistas, a combinação entre a baixa umidade - reforçada pelo fenômeno La Niña, que se repete pelo terceiro ano seguido - o acúmulo de vegetação seca e a ação humana favorece a rápida e intensa propagação do fogo pelas florestas.
No acumulado do ano (1º de janeiro a 5 de setembro), já foram detectados 30.959 focos de queimada no Cerrado, segundo as estatísticas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O número fica levemente abaixo (6%) na comparação com o mesmo período do ano passado, mas supera todos os outros quatro anos anteriores.
Ou seja, é o segundo ano com mais fogo no Cerrado, até aqui, dentro da gestão de Jair Bolsonaro. Como agravante, o início de setembro vem sendo o mais incendiário. Nos primeiros cinco dias do mês, já foram detectados 2.810 focos, enquanto de 1º a 5 de setembro de 2021 houve 1.367 focos, um aumento de 105%.
-- A La Niña traz tempo seco para a região Centro-Sul do país, e nós já estamos com três anos de secura seguida. É um fator relevante -- explica Renata Libonati, meteorologista da UFRJ. -- Além disso, temos o acúmulo de vegetação seca, por falta de manejo, e a ação do homem, que inicia o processo do fogo. Não existe combustão espontânea.
No domingo, a Defesa Civil do Distrito Federal, onde não há chuvas há pelo menos 121 dias, emitiu um alerta em razão da baixa umidade. No sábado, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o índice de umidade do ar foi de 9%. Na segunda-feira, a umidade era de 20%.
No momento, o país vem assistindo aumento alarmante de incêndios na Amazônia. Mas diferente de lá, onde há maiores evidências de desmatamentos ilegais, ocupações de terra e ação de grileiros, no Cerrado especialistas dizem que a questão climática está exercendo uma influência maior para a propagação do fogo. E a cada ano, a situação se agrava.
-- O Cerrado é um bioma onde o fogo é um elemento natural e até importante para o ciclo da natureza. O problema é que temos visto ocorrências mais frequentes e em uma intensidade mais forte. Isso faz com que a capacidade de regeneração da floresta não se concretize. Com grandes incêndios todo ano ou a cada dois anos, não há como a biodiversidade se regenerar -- afirma o engenheiro florestal Beto Mesquita, membro da Coalizão Brasil e diretor da ONG BVRio.
Mesquita lembra que os anos recorrentes de fogo geram um passivo grande acumulado de biomassa, um material combustível muito propício para a propagação de incêndios. Segundo ele, o governo deveria focar em mais ações de preservação às queimadas.
-- Hoje falta articulação do governo federal com os estados e municípios. O fogo está mais relacionado à prevenção do que ao combate direto. Mas as duas frentes estão fragilizadas, o Ibama não consegue agir da maneira que deveria, e as brigadas estão em número menor. Então somando a fragilização dos órgãos de prevenção com o cenário climático, vira a tempestade perfeita. Ou melhor, a seca perfeita.
O engenheiro, doutor em Ciências Ambientais e Florestais, diz que o impacto à biodiversidade pode ser irreversível.
-- Quando começa a queimar todos anos, parte das espécies do Cerrado não conseguem se regenerar mais. Isso causa perda de biodiversidade e de elementos importantes da flora, o que pode comprometer as fontes de alimento para a fauna. É uma reação em cadeia de desequilíbrio.
Essa não é a primeira vez que um incêndio atinge o Parque de Brasília. No ano passado, também em setembro, chamas consumiram a floresta. Os meses de agosto e setembro costumam ser os mais rigorosos da seca no Distrito Federal, o que faz com que haja grande quantidade de queimadas. Em agosto de 2017, outro incêndio consumiu uma área de cerca de 400 hectares. Na época, o incêndio foi classificado com grau 3.
Procurado, o Ministério do Meio Ambiente respondeu que, em relação ao combate a incêndios, apoia a operação Guardiões do Bioma, coordenada pelo Ministério da Justiça.
Na primeira fase da operação, entre julho de 2021 e janeiro de 2022, o ministério disse que houve redução de 24% das áreas queimadas, em um saldo de 3.853 ações preventivas, 1.607 multas aplicadas e 137 maquinários apreendidos, além de 1.580 animais resgatados em 11 estados.
Em junho, houve lançamento da segunda fase da operação, que envolve, ainda, o Ibama, ICMBio, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Força Nacional, Censipam e Funai.