Desmatamento aqueceu Cerrado em 0,9°C e reduziu 10% da produção de umidade
A perda na produção de umidade afeta o ciclo de chuvas do qual a agricultura da região depende
O desmatamento do Cerrado, bioma que já perdeu quase metade de sua área de vegetação nativa, fez seu território aquecer cerca de 1°C no início do milênio, aponta um novo estudo que mapeou mudanças climáticas na região. Esse desmatamento também reduziu em 10% a capacidade das plantas da região lançarem umidade no ar, o que afeta o ciclo de chuvas do qual a agricultura da região depende.
A conclusão está descrita em uma artigo liderado pelas ecólogas Ariane Rodrigues e Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB), que combinou estimativas de temperatura medida por satélites com mapas de cobertura terrestre do cerrado.
O trabalho, que envolveu dez cientistas ao todo, detalhou o que aconteceu entre 2006 e 2019 com a temperatura em cada tipo de transição de uso do solo no bioma, que possui diversos tipos diferentes de fisionomia vegetal, incluindo florestas e campos naturais. A partir desses dados, fizeram uma projeção para entender qual o dano total ao clima causado pela devastação do bioma ao longo da história.
A remoção de florestas para instalação de plantações foi o tipo de alteração mais violenta para o clima local. Nessas áreas, ocorreu um aumento médio de 3,5°C na temperatura e cerca de 40% de perda na evapotranspiração, que é a tranferência de água da terra para a atmosfera por meio de evaporação no solo e transpiração das plantas.
Em áreas arborizadas de savana, a vegetação mais típica do cerrado, a substituição das plantas nativas por pastos e lavouras também prejudicou o clima, aumentando a temperatura em 1,9°C e reduzindo a evapotranspiração em 25%.
As cientistas explicam que esses valores são adicionais ao aumento de temperatura atribuído às mudanças climáticas globais, provocadas pelo agravamento do efeito estufa, que já aqueceram o planeta inteiro em 1,1°C. O aquecimento regional acontece porque a evapotranspiração normalmente atua como um efeito de "ar condicionado natural" nos locais onde ocorre, dissipando calor do solo.
Em artigo descrevendo as conclusões do trabalho na revista "Global Change Biology", as pesquisadoras ainda fazem uma projeção para mostrar o que acontecerá no cerrado caso a taxa de perda de vegetação nativa continue no mesmo ritmo.
"A mudança climática global decorrente do aumento das concentrações atmosféricas de gases-estufa vai apenas a exacerbar esses efeitos", escrevem "Abandonar as políticas de controle de desmatamento ou permitir que o desmatamento legal (pelo menos 28,4 milhões de hectares) continue reduziria ainda mais a evapotranspiração anual (em -9% e -3%, respectivamente) e aumentaria a temperatura média de superfície do solo (em +0,7 ºC e +0,3 ºC, respectivamente) até 2050."
Destruição legalizada
Como a legislação permite proprietários de terra desmatarem até 80% de suas áreas no cerrado, mesmo o cumprimento da lei pelo atual Código FLorestal não seria capaz de frear essas mudanças. O aspecto legal, a conjuntura socioeconômica difere um pouco do que ocorre na Amazônia, onde a área de reserva das propriedades é de 80%, e a ilegalidade é o principal problema.
Segundo Bustamante, o desinteresse da agropecuária brasileira em proteger o cerrado hoje é um comportamento "suicida" do ponto de vista dos negócios, porque esse setor da economia é dependente de um regime estável de chuvas.
— Outros estudos já viram que essas mudanças de uso do solo podem, em última análise, implicar em redução das chuvas, porque para ter água caindo num local ele precisa dessa umidade — explica a cientista — Com o funcionamento das raízes, o que as plantas nativas conseguem fazer é levar toda essa umidade para o ar, principalmente no início da estação chuvosa. O que ocorre é sobretudo um atraso na estação chuvosa.
Segundo Rodrigues, além de prejudicar o clima regional, o desmatamento do cerrado torna os remanescentes de vegetação nativa mais vulneráveis.
— Existe um impacto também em relação a incidência do fogo. O cerrado é um bioma que queima com mais frequência que os outros, mas ele sofre quando a ocorrência de fogo está acima do que é normal para ele — explica a pesquisadora.
No estudo, as pesquisadoras apontam que o problema não tem como ser contornado a não ser pela via da conservação do bioma.
"Políticas encorajando o desmatamento zero e a restauração dos 5,2 milhões de áreas desmatadas ilegalmente conteriam parte dos impactos da mudança de uso da terra na temperatura e na umidade", escrevem.