Rockstar feminista: entenda como Annie Ernaux virou ícone para novas gerações
Vencedora do Nobel de literatura de 2022, autora octogenária conquistou leitoras mais jovens falando sobre as lutas de emancipação de seu tempo
A jornalista francesa Camille Paix testemunhou de perto a popularidade de Annie Ernaux, premiada nesta quinta-feira (6) com o Nobel de Literatura, no seu país. Em uma sessão no último Festival de Cannes, ela lembra que a autora de "O acontecimento" foi ovacionada assim que entrou na sala para apresentar o seu filme "Les années super 8".
"A sala estava cheia de jovens mulheres e ela foi ovacionada de pé. Ela é claramente uma rock star feminista".
O status é recente e inesperado. Durante quase toda sua carreira, a autora de 82 anos colecionou prêmios, mas ficou restrita a uma bolha. Agora alcançou um público amplo - e, principalmente, jovem. Seu último livro lançado na França, o breve "le jeune Homme", com apenas 37 páginas, foi um sucesso de vendas. Vendeu 72 mil exemplares no país desde maio. A obra completa está batendo a marca de 3 milhões de livros vendidos, um número que a coloca entre os escritores mais lidos do país.
Não é difícil de entender por que sua obra essencialmente autobiográfica ganhou força entre uma nova geração feminista. Desde os anos 70, Ernaux mostra o mundo que a cerca a partir de sua própria experiência de "jovem mulher, confrontada com o desprezo social e a dominação masculina", conforme ela própria escreveu. Escrevendo sobre si mesmo e sobre a época que viveu, Ernaux faz a ponte entre as lutas de sua geração e as da nova onda feminista, retratando sempre as mudanças de mentalidade da sociedade.
"No fundo, eu faço o mesmo trabalho de memória que meus pais e avós, que nas refeições festivas evocavam tempos passados que eu não tinha vivido" disse Ernaux em entrevista ao GLOBO em 2019. "Para muitos jovens leitores, também falo de uma época que eles não conheceram."
Exibido em Cannes este ano, o filme dirigido por Ernaux, "Les années super 8", costura imagens rodadas em super 8 por seu marido entre 1972 e 1982 com a narração da própria autora. "É ao mesmo tempo a história da minha vida e de milhões de mulheres em busca de liberdade e emancipação", disse ela ao apresentar o longa.
O mesmo pode ser dito sobre os seus livros. "O acontecimento", por exemplo, narra as marcas de um aborto clandestino nos anos 1960, desde a dificuldade para a realização do procedimento até as feridas psicológicas deixadas nela. "Eu matei minha mãe em mim naquele momento", escreveu. O livro foi adaptado para o cinema em 2021, com o filme ganhando o Leão de Ouro no Festival de Veneza.
No Brasil ela ainda é um fenômeno de nicho, mas com um público fiel. Tanto que, de de 2019 para cá, diversas obras de Ernaux ganharam tradução para o português, como "O lugar", "A vergonha" e "O acontecimento". Juntos, venderam 15 mil exemplares físicos (e 3 mil e-books).
Antes mesmo do Nobel, Ernaux já estava sendo tratada como um "ícone". A autora, porém, rechaçou o rótulo. "Me sinto uma mulher. Uma mulher que escreve, só isso", definiu.